Começamos a nova série com uma colaboração de José Maria dos Santos sobre uma Editora Abril que não mais existe, onde ele foi repórter de Quatro Rodas, editor de Claudia, Veja, Placar, Manequim e Guia Quatro Rodas.

Lembranças da Editora Abril

Prédio da Editora Abril na Marginal Tietê – Crédito Onildo Lima

Se não me trai a memória, em 1989 fui entrevistar “seu” Victor Civita (1907-1990) na sala dele, na sede de Editora Abril, Marginal do Tietê. Deveria recolher sua memória a respeito do Guia Quatro Rodas Brasil, que seria publicada na edição especial do jubileu de prata, a ser comemorado no ano seguinte.

Fazia sentido, pois o guia fora uma criação exclusivamente dele, na qual se empenhou pessoalmente, fazendo inclusive avaliação de equipamentos turísticos como um repórter. Reconhecia sua dificuldade em examinar restaurantes porque não morria de amores por alho e cebola. Durante a entrevista, salvo engano a última que deu, fez vários comentários à margem da matéria.

O mais divertido foi inspirado respectivamente pela culinária, seu bolso e Claudia, introduzida na conversa depois de lhe informar que eu fora editor da revista nos anos 1970. Ele riu e disse. “Quando a prestação de contas das viagens de Claudia vinha à minha mesa, eu ficava aflito. Nossa! Quanto dinheiro”. Convém esclarecer duas coisas: ele não gostava de gastar e as célebres viagens de Claudia eram realmente milionárias.

Apontavam para os destinos mais sofisticados do Brasil e do planeta. A equipe, por baixo, era constituída por umas dez pessoas, deixando dólares a cada passo, entre modelos (masculinos e femininos), jornalistas, produtoras, maquiladores, assistentes… Feita a ressalva, voltemos ao “seu” Victor: “Quando era em Paris, as contas de restaurantes iam às alturas. E olha que eu e a Silvana (a esposa) vamos comer na Pino”. (Pronuncia-se Pinô e batiza uma rede de pizzas e massas que continua em pleno funcionamento).

A queixa bem-humorada, e mordaz, era um retrato dos cuidados, melhor dizendo, das condições de trabalho que a casa oferecia aos seus funcionários em geral, e aos jornalistas em particular. Na revista Quatro Rodas, por exemplo, onde também trabalhei, a editora religiosamente, e na condição de cliente comum, em todo início de ano comprava os carros lançados que seriam utilizados em seus testes.

Jornalistas eram proibidos de se identificar nos restaurantes e hotéis que frequentavam, para não terem informações maquiadas dos serviços oferecidos. Na redação de Veja, na qual, igualmente, batuquei matérias, sobressaia a figura do Sandrini, gerente administrativo, em cujo cofre havia dinheiro vivo de várias partes do mundo, passaportes em dia e tudo o que fosse necessário para uma viagem de emergência.

Lembro-me que, certa noite, nos dias da assustadora enchente de Santa Catarina, em 1983, dali saiu o dinheiro cash com o qual a equipe de enviados contrataria um helicóptero assim que descesse em Curitiba, para sobrevoar o estado e voltar à capital paranaense, uma vez que os pousos estavam interrompidos por lá.

Este perfil da Editora Abril, que tentei resumir nos dois exemplos acima, permite especular que a empresa profissionalizou a imprensa brasileira. Antes dela, e dos seus bons salários, era de praxe que, para sobreviver, jornalistas tivessem dois ou três empregos – muitas vezes sinecuras em secretarias de governo. Salários atrasados eram rotina de várias redações.

Nos Diários Associados, com frequência, equipes que iam viajar aguardavam a chegada da venda do Diário da Noite e Diário de São Paulo para viajar com os bolsos abarrotados de notas miúdas. Mas, sobretudo, com a introdução do jornalismo de serviço, importado da competente imprensa norte-americana, fez a mídia brasileira entrar no século XX, que já ia ao meio por ocasião da sua fundação.

Embora pareça estranho de dizer, a principal inovação da Abril não repousa nas páginas da lendária Realidade ou de Veja, mas em Manequim, Claudia, Quatro Rodas, nos fascículos dos grandes mestres da pintura ou da música clássica. Tratava-se de um novo cardápio jornalístico-cultural que era oferecido aos leitores. Não seria exagero dizer que a Editora Abril modelou a moderna classe média urbana brasileira.

Quem ler os artigos mensais de Carmen da Silva (1919-1981) na revista Claudia, já nos anos 1960, vai verificar que, bem antes da explosão do feminismo, as teses básicas já se disseminavam entre nós. Este texto que vocês estão lendo vem a propósito dos novos rumos que a Editora Abril está tomando. Não é caso de se entrar no mérito desses caminhos, pois foram impostos pelo processo inexorável de um (belo) ciclo que está chegando ao fim.

Mas os ex-abrilianos dos anos 1950 a 80 provavelmente estão, como eu, atônitos diante das mudanças, bem representadas pelos logotipos históricos passados para a frente.

PS – As quatro unidades da Rede Pino de Paris – Champs Elysées, République, Opéra e Montparnasse – continuam com preços convidativos. No chamado Menu Généroso, uma refeição completa, a escolher entre várias opções, custa 19 euros, cerca de R$ 70. Exemplo: entrée: salada caprese; plat: pene aos quatro queijos; dessert: musse de chocolate. Também há promoções: um aniversariante do dia ganha sobremesa de graça; o freguês que retorna, terá desconto de 20% na visita seguinte.