Por Luciana Gurgel

Luciana Gurgel

O Reino Unido anda “acéfalo”, vivendo uma combinação de férias de verão com os últimos dias de um primeiro-ministro no cargo.

No cargo é maneira de dizer, pois Boris Johnson viajou para celebrar a lua de mel e agora está de férias, enquanto vans tiram seus pertences de Downing Street, 10. A imprensa especula que ele pode nem voltar a morar lá até a posse do novo chefe de governo.

Enquanto os dias passam no que foi apelidado de “zombie government”, um caso que muitos consideram divisor de águas na história da liberdade de imprensa segue em compasso de espera: Julian Assange continua preso na penitenciária de Belmarsh, com a autorização de sua extradição para os EUA aparentemente paralisada.

A secretária do Interior Priti Patel, a quem hoje cabe a decisão, continua no cargo e apoia a provável nova primeira-ministra, Liz Truss.

Truss é aliada de primeira hora de Boris Johnson, que deve continuar com influência sobre o novo governo.

Ela própria, hoje secretária Nacional de Relações Exteriores, tem um perfil pouco inclinado a perdoar um suposto crime de guerra ou a querer arrumar uma inimizade com um aliado poderoso como os EUA.

Isso significa que são poucas as chances de a nova gestão mudar de opinião sobre o destino de Assange. E a atual já disse que vai seguir a decisão judicial, que autorizou o envio do fundador do Wikileaks para os EUA.

A defesa de Assange chegou a sinalizar que poderia apelar para um tribunal de direitos humanos europeu, mas até agora não o fez.

Salvo uma reviravolta no caso, a extradição pode acontecer antes da posse do novo primeiro-ministro (ou nova), para preservá-lo(a) do desgaste. Ou depois, caso ele (ou ela) queira usar o ato para simbolizar firmeza e proximidade com os EUA.

Pelo vazamento de segredos das guerras do Irã e do Iraque, Assange responde a 18 processos, que podem valer 175 anos em uma prisão de segurança máxima. Os processos, movidos pelo Departamento de Estado, foram iniciados na administração de Barack Obama. Passaram por Trump, e agora estão sob Joe Biden.

Quando o democrata tomou posse, partidários de Assange e sua mulher, Stella, esboçaram esperança de que o novo presidente poderia desistir das acusações, mas isso não aconteceu. Seria improvável, pois em 2010, então vice-presidente dos EUA, Biden disse que Assange era um “terrorista de alta tecnologia”, que colocou vidas em risco e tornou a vida do país mais difícil.

Este é o ponto central do caso Assange, e onde ele deixa de ser uma causa individual para se transformar em coletiva, com impacto sobre o jornalismo e sobre a democracia.

Assange não é unanimidade. Há quem o critique, e quem não o considere um jornalista. É o que acontece com o CPJ (Comitê de Proteção a Jornalistas), que em um manifesto há alguns anos disse que não o considerava como tal porque o Wikileaks não é um veículo com publicação regular.

Mas o mesmo CPJ, assim como as organizações de liberdade de imprensa, de expressão e de direitos humanos, entende que o vazamento de segredos importantes para a sociedade faz com que os processos contra ele representem uma ameaça.

Se condenado como jornalista ou como fonte, Julian Assange servirá de modelo para processos contra outros jornalistas, empresas de mídia ou informantes, podendo levar a autocensura da mídia e medo por parte de quem poderia revelar histórias de interesse da sociedade.

O jornalismo investigativo se sofisticou e tem jogado luz sobre escândalos de corrupção e crimes por meio de redes colaborativas globais. Colocar isso em risco é um retrocesso.

Por isso, partidários de Assange e do jornalismo livre tentam de tudo. O mais recente ato foi um processo movido por dois advogados e dois jornalistas denunciando que a CIA os espionou quando visitaram o fundador do Wikileaks na embaixada do Equador em Londres.

Pode não dar em nada, mas são as armas de uma guerra que pode ter um desfecho com repercussões importantes para o futuro do jornalismo. E que merece ser acompanhada.


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