Por Marco Antonio Zanfra
Fisicamente, ele lembrava mesmo o imperador francês: baixinho, cabelinho liso empurrado para o lado, o mesmo olhar inquisidor e insolente… Mas duvido que Napoleão Bonaparte, o histórico, tivesse a mesma veia artística e a mesma capacidade de transmitir tanto o belo quanto o transgressor como nosso Napoleão, também conhecido como Ari de Moraes Possato.
Ele teria 78 anos hoje, completados em fevereiro. Não me lembro o ano de sua morte, mas, pelo tanto que convivi com ele, tenho certeza de que aconteceu porque seu corpo não suportou a intensidade de sua vida.
Trabalhei com ele na Folha de S. Paulo e na revista Agora, da Editora Três. Mas não nos separamos nem no intervalo entre os dois empregos, quando – eu ainda na Folha e ele no Diário Popular – nos encontrávamos pelas pautas da vida e a primeira informação que trocávamos era a localização do bar mais próximo. Tanto quanto eu, na época, ele era dado a “libações alcoólicas”, maneira um pouco menos mundana de tomar umas e outras.
Dono de um texto enxuto e certeiro, Napoleão foi dos melhores repórteres policiais que conheci e com quem tive o privilégio de aprender. Depois de largar a profissão, eu já morando em Florianópolis, conheci seu lado artista plástico – algo que me surpreendeu. Recebi em casa, pelos Correios, dois envelopes contendo pinturas dele. A última vez que o vi foi na praça da República, em São Paulo, expondo seus quadros. Ele me disse, naquela época, que estava bebendo “só um pouquinho”.
Napoleão tinha um descontrole motor causado, segundo me disse uma vez, por um AVC que sofreu aos 12 anos de idade. Essa disfunção o obrigava a escrever suas matérias com apenas uma das mãos – com apenas um dos dedos, para ser mais exato. Ele firmava a mão direita na base da máquina de escrever, enquanto o indicador da mão esquerda martelava raivosamente o teclado. Desse metralhar barulhento, saíam suas grandes matérias.
Mas a descoordenação motora não o afetava apenas na missão de escrever. Lembro-me de uma ocasião em que o ato de se alimentar quase chegou a causar uma tragédia. Foi numa situação que, não fosse constrangedora, seria até cômica:
1 − Estávamos cobrindo a visita de alguma autoridade às obras de uma estação de tratamento de esgotos em Osasco. Depois da visita, a empreiteira que tocava a obra ofereceu um almoço trivial aos repórteres. Era arroz, feijão, uma saladinha de tomate… e um enorme bife por cima. Se eu não tivesse controle pleno sobre o movimento de minhas mãos, certamente pediria que alguém me ajudasse e cortasse o bife em pedaços. Mas Napoleão pensava diferente, e resolveu partir para o tudo ou nada usando apenas a “mão boa”, a esquerda.
2 – Ele enfiou o garfo no bife e levou a carne à boca, tentando cortá-la com os dentes. Como o pedaço era muito grande e não se rompia, o bife foi sendo enrolado no garfo, e ele rolando o garfo com a mão sem largar o coxão mole, até que o talher escapou do controle e, com carne e tudo, foi atingi-lo no rosto, alguns centímetros abaixo do olho direito. Entretanto, ele não se deu por vencido: limpou com um guardanapo o sangue que fluía em certa quantidade do ferimento, fez de conta que nada tinha acontecido e, com mais alguns ataques, conseguiu vencer o bife que ousara desafiá-lo.
Esta é só uma historinha. Tenho certeza de que muitos repórteres que conviveram com ele têm relatos ainda melhores para dividir conosco. Fica aqui neste espaço o convite. Afinal, Napoleão era uma lenda – pelo menos para mim.
A história desta semana é novamente de Marco Antonio Zanfra, que atuou em diversos veículos na capital paulista e em Santa Catarina. Em Florianópolis, onde reside, trabalhou em O Estado e A Notícia, na assessoria de imprensa do Detran e do Instituto de Planejamento Urbano, além de ter sido diretor de Apoio e Mídias na Secretaria de Comunicação da Prefeitura. É também escritor.
Ele conta: “Conversando outro dia com o Ubirajara Jr., ele sugeriu que a gente lembrasse no Memórias da Redação de algumas historinhas envolvendo Napoleão, o repórter Ari de Moraes Possato, com quem tive o privilégio de conviver. Ponderei com o Bira que a maioria das histórias que conheço envolvem cachaçada e poderiam desmerecer a memória do retratado, já falecido. Mas me lembrei de uma − que, além de mim, teve apenas mais uma testemunha − que não é tão difamatória, embora não seja também meritória. Pelo sim, pelo não, resolvi escrever e deixar a critério de vocês a publicação. (Obs.: a foto, a única que encontrei, está no Face da Página da Memória da Polícia Civil do Estado de São Paulo. É de 1978)”