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quinta-feira, abril 25, 2024

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Amor de pai

Ibsen Pinheiro

A recente despedida do deputado Ibsen Pinheiro, em 24 de janeiro, remeteu-me a um episódio de forte caráter afetivo que enriqueceu os meus 50 anos de jornalismo. Seu impacto deve ser creditado àquele misterioso código de afinidade entre progenitores, que nos acompanha talvez desde os tempos das cavernas.

Ocorreu em 2001, no fim de uma manhã. Tocou o telefone da minha mesa no Jornal da Tarde.

– Bom dia. Aqui quem fala é Ibsen Pinheiro.

A origem desse telefonema pede necessários prolegômenos, como diria Jânio Quadros, com o seu hábito de pentear a língua portuguesa para ser melhor entendido.

O deputado Ibsen Pinheiro (1935-2020), que desenvolveu sua trajetória política no extinto PMDB, foi uma grata e meteórica revelação na virada da redemocratização. Em 1982 era deputado estadual no Rio Grande do Sul; em 1986 já participava da Assembleia Constituinte que ofereceria ao País a Carta que Ulisses Guimarães chamou de “cidadã” em 1988. Em 1992, ocupando a cadeira de presidente da Câmara dos Deputados, governou com tal propriedade o tumultuado processo de impeachmentde Fernando Collor de Mello, o primeiro desse gênero entre nós, que seu nome se tornou uma barbadana política. (Somente esse jargão do turfe, aplicado para designar o cavalo favorito do páreo, poderia dar a medida do prestigio adquirido). Porém, para enorme surpresa nacional, em menos de dois anos Ibsen passou a ser azarão, acusado de corrupção na célebre CPI do orçamento e fazer parte do não menos famoso escândalo dos anões do orçamento. Teve o mandato cassado sob o estigma da desonestidade, embora permanecesse no ar uma série de dúvidas sobre sua culpabilidade. Em 2000 o Superior Tribunal Federal arquivou o processo por falta de provas e um novo mandato lhe foi dado pelas urnas em 2006. Possivelmente já fosse tarde demais para promover uma redenção completa.

Nessa mesma época, tangido por Murilo Felisberto, fui para o Jornal da Tarde, que estava em curva descendente, a fim de participar do esforço de recuperação. Murilinho, obedecendo a seus hábitos sofisticados, levou-me para almoçar no Gero, onde me faria o convite. (Dada a nossa intimidade, bastaria tomar um café em qualquer padoca de esquina. Acontece que o Gero, um dos braços do Fasano, na rua Haddock Lobo, e o Spot, na alameda Ministro Rocha Azevedo, eram seus restaurantes favoritos, na verdade, manias suas, das quais ele não abria mão. Em tempo: saudades dele!). É vencer ou vencer, disse-me na ocasião com uma agressividade que sua frágil aparência física desmentia.

A julgar pelas suas providências, estava seguro dos seus propósitos. Já decidira pela aquisição de uma nova família tipográfica, como convém a um artista das artes gráficas do seu tamanho. E na edição de 26 de julho de 2000, uma quarta-feira, teve oportunidade de sinalizar a que viera. Compôs uma magnífica capa, melhor dizendo, inesquecível, sobre a queda do Concorde em Paris no dia anterior, fazendo uma manipulação de preto e branco – sob seu proverbial apuro tipográfico – que Henri Cartier-Bresson aprovaria sem restrições. Ainda sob seu comando o JT produziria variados arroubos jornalísticos que imitavam o JT dos seus tempos gloriosos. Lembro-me particularmente de dois. O primeiro foi a série sucessiva de manchetes, assinada pelos repórteres Danilo Angerami e Marinês Campos, sobre a existência e atividades do PCC, até então pouco divulgadas, que daria dimensão nacional à organização e abriria o amplo debate que continua atual. (A origem da publicação deveu-se à consciência jurídica e religiosa – um católico extremado – do desembargador aposentado Renato Laércio Talli, então corregedor da Secretaria de Assistência Penitenciária, que foi a fonte das reportagens, face aos relatos cruéis que lhe chegavam, vindos diretamente do interior dos presídios paulistas). O segundo arroubo materializou-se numa dupla de repórter e fotógrafo que passou a cobrir a noite paulistana sob uma pauta diversificada, que não se limitava, isto é, não era engessada pelo tradicional e convencional noticiário policial. Esse arranjo era completado por um “marronzinho” que, quando fora do seu expediente na Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), rodava pela cidade de máquina fotográfica em punho e o ouvido colado no sistema de rádio da empresa para inteirar-se de tudo o que ocorria na cidade durante as chamadas horas mortas, e, evidentemente, registrar. Resultou numa quase diária sequência de atraentes assuntos inéditos e curiosidades da cidade. O fato é que, pouco antes de Murilo deixar o JT, em 2003, cujo data precisa me foge da memória, ele quebrou o férreo silêncio referente à vendagem e me disse que o jornal havia interrompido a queda prolongada e contínua de circulação; sugeria que no fundo do poço havia encontrado uma mola. Foi a única vez que abordou os efeitos do seu trabalho naqueles tempos em que estivemos juntos. Cerca de quatro anos depois, o JT viria morrer, sem choro nem vela, em mãos de terceiros.

Márcio Pinheiro, filho de Ibsen, entrou no JT em 2001 para ser editor de Variedades. Em 2002, por motivos que desconheço, voltou para Porto Alegre, onde havia feito todo o seu caminho jornalístico até ali. Suspeito que deva ter pesado a nostalgia pampeira e o distanciamento do Colorado, o Internacional, no qual a família sempre teve ativa e tradicional participação e do qual ele é conselheiro.

Não foi difícil constatar que Márcio era filho de Ibsen, jornalista como ele. Notei de imediato um sutil constrangimento relativo à história do seu pai e aquilo que poderiam pensar dele, até porque nós, brasileiros, nos especializamos em patrulhar o próximo e fazer batucada de má qualidade quando estamos no Exterior. Procurei tranquilizá-lo, levando em conta seu conforto pessoal e profissional, associado à injustiça atirada contra o deputado. Foi algo apenas preventivo, pois não sabia se era o caso e nem o que se passava na cabeça dele.

O telefonema daquele fim de manhã foi breve e profundamente revelador no seu laconismo.

– Pois não, deputado.

– Quero lhe agradecer pela conversa que teve com o meu piá (*).

(*) No dicionário gaúcho, piá é a palavra com que os pais designam suas crias tenras. Naquela época, o piá de Ibsen Pinheiro andava por volta dos 33 anos, uma vez que já chegou aos 53.

José Maria dos Santos. Crédito: Zanoni Fraissat/Folhapress

Esta é novamente uma colaboração de José Maria dos Santos, ex-Diários Associados, Manchete, Abril e Diário do Comércio, de São Paulo, entre outros.


Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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