Por Guilherme Meirelles
Em seus devaneios pelo Palácio dos Bandeirantes, o neopaulista Tarcisio de Freitas tem encontrado dificuldades para convencer os eleitores de seus vínculos com o Estado de São Paulo. Nem tanto por suas convicções bolsonaristas, mas sim pela sua cara de pau em tentar entrar em uma festa para a qual não foi convidado e tampouco conhece os anfitriões. Na política, às vezes, a estratégia dá certo, quando se é amigo do dono da casa, como já ocorreu em tempos passados, quando o ex-prefeito Paulo Maluf passou o bastão para seu correligionário Celso Pitta, conterrâneo do atual candidato bolsonarista, mas que, ao contrário do atual, já estava bem familiarizado com os hábitos locais. E não é que Tarcisio de Freitas conseguiu a proeza de reacender a velha rivalidade Rio x São Paulo? Ou alguém considera possível encontrar um flamenguista que leve em conta o local de nascimento de Gabigol ou faça restrições à origem caipira do araraquarense Dorival Junior?
Nos anos 1990, as diferenças entre as duas principais capitais brasileiras ainda eram bem nítidas. Por volta da segunda metade da década, quando estava desempregado, peguei um frila fixo temporário (aquele que você tinha horário para entrar, mas não para sair, em um período determinado e sem contrato) em uma agência emergente, hoje sediada no coração da paulistana avenida Faria Lima, mas que na época ficava em uma casa residencial mal e porcamente adaptada para espremer dezenas de colaboradores, no Itaim. Os donos eram muito bem relacionados no mundo corporativo e institucional, o que gerava uma respeitável carteira de clientes, entre eles uma entidade patronal do setor de bebidas, sediada no Rio de Janeiro.
Na época, os temas sobre saúde e qualidade de vida começavam a ganhar mais espaço na mídia, desbancando o glamour e o charme sobre as garrafas de uísque e cerveja entornadas por artistas e atrizes nas mesas de bar, mostrando que os efeitos causados iam além de uma homérica ressaca no dia seguinte. Nos anos 1990, o governo federal havia aprovado a lei até hoje em vigência, na qual estavam vetadas a propaganda de bebidas alcoólicas na TV, com exceção daquelas com teor alcoólico inferior a 13 graus Gay Lussac (GL), categoria em que estão enquadradas as cervejas, medida marota fruto de lobby articulado pelo setor no Congresso. Caberia, então, à entidade de classe posicionar-se e explicar que não era bem assim, que o setor gerava empregos, era bom pagador de impostos, estava comprometido com o crescimento da economia nacional e era peça fundamental no turismo. De que forma? Contratando uma assessoria de imprensa e passar uma imagem de transparência para a sociedade.
Só que a entidade não tinha a menor relação com a imprensa e o seu principal executivo, recém empossado, era praticamente virgem no trato com jornalistas, principalmente quando saía do circuito Copacabana-Ipanema-Leblon. A solução foi promover uma coletiva de imprensa em São Paulo, que abrigava na época, os principais jornais econômicos – Gazeta Mercantil e DCI –, as revistas da Editora Abril e os jornalões Folha e Estadão, com seus respectivos filhotes – no caso, Jornal da Tarde e Folha da Tarde. Mas, antes, seria recomendável conhecer o executivo e realizar um media training para evitar derrapadas nas possíveis cascas de banana a serem jogadas na coletiva. Meio na base do improviso, fui escalado para participar do treinamento, embora não atendesse àquela conta.
No dia marcado, escuto ao fundo uma voz masculina conversando em tom animado com a recepcionista. Era ele, que acabava de chegar do aeroporto de Congonhas. Grandalhão, extrovertido, na faixa dos 40 e poucos anos, com um forte sotaque da Zona Sul carioca, o sujeito ostentava uma proeminente circunferência abdominal, o que hoje seria inadmissível no mundo corporativo, mas que o qualificava perfeitamente para exercer a sua posição na entidade etílica nos padrões aceitos até o século passado. O sotaque, entendemos nós, não seria problema, era até um diferencial para quebrar o clima da coletiva.
Acompanhado de três colegas da agência, subimos para a sala de reuniões, ainda em um clima informal. No início, a sensação era de estarmos em uma mesa do Amarelinho ou do Belmonte, mas na medida em que formulávamos as questões previstas no media training a impressão era que alguém havia colocado água no chope. Ao referir-se a um desafeto político, o executivo tergiversou e o chamou de “nojento”, expressão carioca para designar uma pessoa arrogante e cheia de empáfia. A expressão em si já era deselegante para ser usada em uma coletiva, ainda mais com um sentido que, em terras paulistas, é mais apropriado para alguém que põe o dedo no nariz na mesa de almoço ou encontra uma barata no meio do prato. Nos entreolhamos e a “entrevista” prosseguiu. O termo “nojento” voltou mais duas ou três vezes, acompanhado de expressões pouco usuais em São Paulo, como “sinistro”, sempre pronunciada com aquele típico acento que soava “sinishtro”. Chegou um momento em que o líder da reunião interrompeu a atividade e didaticamente explicou ao simpático porta-voz que não seria possível desenvolver uma narrativa naquele estilo para jornalistas engravatados, acostumados a um tom mais sóbrio nas coletivas. Desapontado com o comentário, o executivo deu uma breve murchada, mas aceitou as críticas, baixou a bola no carioquês e o treinamento prosseguiu sem maiores turbulências estilísticas regionais.
E o final? Bem, acabei não participando na coletiva, mas lembro que foi bem-sucedida e o cliente ficou satisfeito. Até gostaria de saber das impressões do executivo sobre o trabalho, mas nem ao menos recebi o tradicional convite do “aparece lá em casa” sem deixar o endereço.
A história desta semana é de um estreante neste espaço, Guilherme Meirelles, que teve passagens por Folha de S Paulo, Folha da Tarde, Agência Estado e assessoria de imprensa na Câmara Municipal de São Paulo, entre outros. Atualmente é colaborador freelance do Valor Econômico e da revista Problemas Brasileiros.
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