Por Eduardo Brito Cunha

Falecido no domingo, 4 de setembro, o jornalista Antonio Carlos Antunes Scartezini passou por todos os grandes veículos e por todos os episódios políticos de 40 anos da história brasileira. Tinha um estilo próprio de trabalho, tanto na apuração quanto na redação. Era um paciente cultivador de fontes de informação, o que lhe rendia muita conversa de bastidor, além de material para dois livros, Segredos de Médici e Doutor Ulysses. Era também um fanático pela qualidade de texto, o que trazia dos tempos em que se via como poeta na sua Goiás natal. Dizia que não se podia ser poeta em Goiás ou jornalista em qualquer lugar sem conhecer os nomes de todos os rios goianos e de como a poesia deveria ditar o ritmo do texto.

Quando chegou de Goiânia para estudar na Universidade de Brasília, não havia ainda cursos de Jornalismo na capital. Formou-se em Sociologia, dando ênfase a Antropologia e a Ciência Política. Começou então a trabalhar no Jornal de Brasília, seguindo logo para o Estadão, onde ficou por longo tempo, até aceitar um convite de Veja, que vivia seus áureos tempos. Pela Veja, trabalhou em Brasília, Belo Horizonte e São Paulo, quase sempre cobrindo política. Desde o início de carreira assinava seus textos como A.C. Scartezini, motivo pelo qual muitos dos colegas não percebiam, ao atender a uma ligação para Antonio Carlos, que o chamado era para Scarta.

Era um admirador do ritmo de trabalho de Veja, com seus fechamentos alucinados, mas encarava com humor a pressão desse trabalho. Tarde da noite de uma sexta-feira, Scartezini jantava com a mulher, Virgínia, e um casal de amigos no Piantella, a essa época já o point de políticos de todos os matizes. Ainda não havia celular, claro, e os repórteres de Veja eram obrigados a informar para a revista os telefones dos locais em que estivessem após enviarem as matérias para a sede. Minutos antes da meia noite, o maître foi à mesa para dizer que Scartezini era chamado com urgência. Atendeu e recebeu um pedido: precisavam que alguém de peso bancasse uma frase sobre o então czar da economia, Delfim Netto. Com a paciência que o marcava, Scartezini sentou-se ao telefone, ligou para o deputado Tancredo Neves, mais uns dois políticos até que, enfim, o senador Roberto Saturnino concordou em assumir o texto, embora quisesse algumas modificações. Seguiu-se a inevitável negociação com a editoria, até se chegar a um consenso. O repórter voltou à mesa. Raposa velha, prolongou a conversa, pois conhecia as regras do jogo. Não deu outra. Passadas as duas da manhã, foi de novo chamado ao telefone. Do outro lado, a ordem: “Mudou o texto”. Seguiu-se nova negociação com Saturnino até que, madrugada alta, fez-se a paz.

Memórias da Redação: O estilo de Scartezini
Roberto Saturnino (Crédito: Senado Federal / Plenário do Senado, CC BY 2.0)

Não era o único caso. Pouco mais de um ano depois, Scartezini e uma jovem repórter de Brasília, hoje professora universitária, participaram de uma matéria nacional, que deveria ser a capa seguinte de Veja, sobre controle de natalidade. Caberia a eles ouvir o Ministério da Saúde, o Ministério da Justiça e mais uma série de parlamentares que se interessavam pelo tema. Pelas contas de Scartezini, ouviram 12 pessoas cada um. Já no meio da semana seguinte foram avisados de que a matéria deixaria de ser capa e seria reduzida a uma simples página. Não gostaram de ver perdido o esforço, mas não havia o que fazer, aparentemente. Havia, sim. No mesmo pico do fechamento, veio o telefonema da editoria. Pediram que ambos ouvissem todas as fontes entrevistadas para saber que método anticoncepcional utilizavam. A repórter telefonou para o senador e ex-ministro Roberto Campos. Sempre um lorde com os jornalistas, Roberto Campos disse que não poderia dar uma resposta a ela, mas que gostaria de mandar sua posição à revista. Aliás, não era exatamente uma resposta. A repórter transmitiu lealmente o recado de Campos e pediu demissão. Scartezini ficou ainda mais uns meses em Veja.

Foi ainda nesse período que ele levou um ousado projeto à direção da revista. Governante no período mais repressivo do regime militar, o ex-presidente Emílio Garrastazu Médici jamais havia falado à imprensa. Entrevistas, nem pensar. A essa altura, Médici já estava fora do circuito político e passava a maior parte do tempo em seu apartamento de Copacabana ou na fazenda que tinha em Dom Pedrito, Rio Grande do Sul. Scartezini propunha fazer o que mais gostava: cultivar a fonte. Procurar conversas com Médici, sem nada publicar, até que se chegasse a um consenso a respeito. Para surpresa geral, Médici concordou. Desde – claro! − que algo só fosse divulgado com sua autorização – que nunca veio. Mas as conversas ocorreram, em geral no Rio de Janeiro e com a presença tanto de D. Scylla, mulher do ex-presidente, quanto do general Carlos Alberto Fontoura, que fora chefe do Serviço Nacional de Informações de Médici. O ex-presidente usava frequentemente Fontoura para passar posições suas: “O Fontoura, aqui, acha que…” e aí vinha. Após a morte de Médici, Scartezini publicou Segredos de Médici, único livro independente já publicado sobre o ex-ditador.

Memórias da Redação: O estilo de Scartezini

Nele há revelações históricas importantes, como o reconhecimento, por Médici, da tortura nos quartéis, embora ele não admita que era aplicada de forma sistemática, institucional. Assumia a responsabilidade, porém, pelas mortes que costumava atribuir a confrontos armados. Além disso, demonstra que as preocupações políticas do ex-presidente, já fora do governo, referiam-se principalmente a comparações de imagem com os sucessores. Médici gostava de dizer, por exemplo, que o general Ernesto Geisel posava de favorável à abertura, mas cassara parlamentares oposicionistas e até fechara o Congresso, enquanto ele, Médici, nunca cassara ninguém e exigira, para assumir, que se reabrisse o Congresso, fechado desde a assinatura do Ato Institucional nº 5. “Eu era o arbítrio, mas quem fechou foram eles”, insistia. Prestava muita atenção, ainda, em atritos nos meios militares, indignando-se quando os sucessores aplicavam sanções contra oficiais que os hostilizavam. Da mesma forma, o outro livro de Scartezini, Doutor Ulysses, utiliza informações de bastidores para mostrar a trajetória do líder que conseguira pautar a redemocratização brasileira.

Memórias da Redação: O estilo de Scartezini

Essa era uma das características básicas de Scartezini. Quando investia em uma matéria, não poupava esforços para obtê-la e para sofisticá-la. Para conversar com Médici, seguiu o general do Rio de Janeiro para Petrópolis, para Porto Alegre, onde o ele tinha apartamento no mesmo prédio de um dos filhos, e mesmo para a fazenda do ex-presidente em Dom Pedrito, interior gaúcho. O mesmo fez com Ulysses Guimarães, acompanhando-o até em momentos em que nada poderia conseguir para a cobertura do dia a dia.

Esse detalhismo valia para o estilo. Guardava matérias feitas até em seus tempos de foca, como a cobertura que fez da invasão armada da Universidade de Brasília. Em 1968, agentes das polícias Militar, Civil, Política (Dops) e do Exército invadiram a UnB e detiveram mais de 500 pessoas na quadra de basquete. Sessenta delas acabaram presas. Os invasores agiram com violência, retirando alunos de sala de aula, espancando e agredindo. Scartezini registrava, em seu texto, pormenores como as gotas de sangue de um aluno pingaram no jaleco branco de um professor de Medicina.

De volta a Brasília, ainda passou pela Folha de S.Paulo e pelo Correio Braziliense, sempre na cobertura política. Trabalhou algumas vezes em assessorias de imprensa, mas era óbvio que sua praia era a Redação. Foi o rumo seguido também pelo filho Bernardo, embora priorizando a cobertura de Cultura, especialmente de música.

Já estava semiaposentado quando apresentou sinais de problemas cardíacos. Ficou internado um mês no Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, onde faleceu, aos 77 anos.


Eduardo Brito Cunha

A história desta semana é novamente uma colaboração de Eduardo Brito Cunha, ex-Estadão, Jornal do Brasil, Correio Braziliense e Jornal de Brasília.

Nosso estoque do Memórias da Redação continua baixo. Se você tem alguma história de redação interessante para contar mande para [email protected].

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