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quarta-feira, dezembro 4, 2024

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Jornalismo off-line

Por Marco Antonio Zanfra ([email protected])

No aniversário de 20 anos do advento da internet, a Folha incumbiu o repórter Bruno Fávero de fazer matéria como se fazia 20 anos antes, quando não havia a rede mundial de computadores. Diz o texto que abre a matéria publicada no site do jornal: “Gravador portátil devidamente equipado com fita cassete e pilhas, bloco de papel, caneta e orelhão. Materiais que parecem jurássicos para jornalistas de hoje eram usados há apenas 20 anos na profissão, quando a internet ainda dava os primeiros passos no Brasil”.

Os leitores do J&Cia, principalmente os mais jovens, hão de duvidar que alguém consiga trabalhar sem os recursos do Google, do WhatsApp, dos e-mails, do envio imediato de textos e fotos…

Pois vou contar um segredo: fiz isso durante pelo menos durante 20 anos. Eu e minha geração de jornalistas – além, é claro, das gerações anteriores – fizemos não apenas uma matéria, como Bruno Fávero, mas TODAS as nossas matérias sem os recursos disponíveis hoje em dia num simples clique no teclado ou no mouse. Éramos os jornalistas off-line, simplesmente porque ainda não existia a LINE.

Nossas pesquisas eram em meio a poeira, no arquivo do jornal, o chamado banco de dados. Nossa comunicação, enquanto estávamos na rua, era por meio de orelhões, com fichas telefônicas (os cartões vieram muito mais tarde). Não havia internet e também não havia celulares. Às vezes, em determinadas circunstâncias, tornava-se impossível você, da rua, entrar em contato com a redação.

Uma dessas situações aconteceu comigo e é com ela que pretendo ilustrar esse confronto entre épocas:

Aconteceu no Natal de 1980, 25 de dezembro. Os presos da Penitenciária do Estado resolveram se rebelar. A imprensa toda foi mandada para a entrada da cadeia, na avenida Ataliba Leonel, Zona Norte de São Paulo. O chefe de Reportagem de plantão na Folha de S.Paulo era o Candinho (Cândido Cerqueira Silva) e ele me despachou para o local, mandando que o mantivesse informado – por orelhão, é bom lembrar. A Agência Folhas, que trabalhava para todos os veículos do grupo, mandou o repórter Jorge Zappia, meu amigo e colega de faculdade. Como estávamos em dois carros com a mesma origem/destino, achamos melhor, por questão de logística (plantões tinham menos veículos disponíveis), dispensar um deles

Eu achava que, justamente por ser dia de Natal, o motim seria rapidamente dissolvido. Tinha duas fichas telefônicas no bolso e achei que seriam suficientes.

(Sete anos mais tarde, conheci Cristina Sant’Anna, que foi minha editora na extinta Folha da Tarde; Cris tinha uma moedeira estufada com fichas telefônicas e a entregava ao repórter que tivesse de ir para a rua numa situação imprevista – mas, infelizmente, como eu disse, só fui conhecê-la sete anos depois.)

A rebelião ia se estendendo. Os repórteres estavam confinados junto ao primeiro portão do complexo, sem qualquer informação. Já eram quase seis da tarde quando gastei minha segunda ficha e rodei mais de um quilômetro pelas imediações, procurando inutilmente um lugar para comprar mais. Sem fichas telefônicas, sem comunicação com a redação – não existiam celulares, lembram-se? – apostei na sorte de a situação resolver-se em no máximo uma ou duas horas.

Pouco antes das nove, os repórteres puderam chegar mais perto do portão principal e começaram a brotar as primeiras informações: tudo estava sob controle, não havia feridos, a tropa de choque já havia cumprido a missão e iria sair do presídio… E enquanto afirmavam que tudo estava bem, um pastor alemão da PM passava com a boca cheia de sangue. Ou seja, as informações reais ainda estavam para chegar…

Rebeliões em prisões nunca acabam bem. Eu não podia abandonar o campo de batalha sem notícias mais precisas. Passava das dez quando decidimos em comum acordo que o Zappia voltaria para o jornal com as informações disponíveis (tínhamos apenas um carro, e ele escreveria para todos os jornais do grupo). Pedi-lhe que, assim que chegasse, procurasse o plantonista de fechamento da Folha de S.Paulo – que, no dia, era o Carlinhos Machado – e lhe informasse da situação, passando-lhe rapidamente a matéria para o fechamento.

Era quase meia-noite quando finalmente voltei para a redação, com informações mais completas. O Zappia ainda estava escrevendo e me deu a má notícia: o Carlinhos disse simplesmente que o jornal já estava fechado e que ele não esperaria o texto dele. Em vista disso, passei algumas informações para o Zappia e fui para casa.

No dia 26 de dezembro de 1980, a Folha de S.Paulo foi provavelmente o único jornal a não dar uma linha sobre a rebelião. Quando cheguei à redação, tomei um esporro homérico do chefe de Reportagem Adilson Laranjeira – quem trabalhou com ele sabe exatamente do que estou falando – e ganhei uma suspensão por não ter cumprido minha obrigação de ter voltado para a redação a tempo de entregar a matéria para que o Carlinhos Machado não fechasse o jornal sem a notícia. Ainda se tivesse passado pelo telefone…

Bóris Casoy, que era o editor da Folha, acabou abrandando minha punição: eu fora suspenso, segundo ele, porque a chefia pensava que eu não tinha voltado para a redação depois do motim, que tinha ido direto para casa, deixando a incumbência de escrever a matéria para o Jorge Zappia.

Assumo parte da culpa pelo que aconteceu. Foi um pouco de inépcia de minha parte. Não poderia ter confiado na solução rápida do conflito. E devia ter-me abastecido com fichas telefônicas. Porque, afinal, não tínhamos celular ou WhatsApp…

Marco Antonio Zafra

A história desta semana é novamente de Marco Antonio Zanfra ([email protected]), que atuou em diversos veículos na capital paulista, entre eles Folha de S.Paulo, Agora, revista Manchete, Jornal dos Concursos, Folha da Tarde e Diário Popular, e, em Santa Catarina, foi editor em O Município (Brusque) e em seguida no Jornal de Santa Catarina (Blumenau). Em Florianópolis, onde reside, trabalhou em O Estado e A Notícia, na assessoria de imprensa do Detran e do Instituto de Planejamento Urbano, além de ter sido diretor de Apoio e Mídias na Secretaria de Comunicação da Prefeitura.

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Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected] e contribua para elevar o nosso estoque de memórias.

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Sérgio Fleury Moraes
4 anos atrás

Excelente texto. Só uma dúvida: na “Folha” ninguém atendia ligação a cobrar? Mas foram tempos do mais puro jornalismo criativo, sem a tecnologia atual.

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