Por Luciana Gurgel, especial para o J&Cia

Luciana Gurgel

O Reino Unido deu um exemplo negativo de sexismo e misoginia no jornalismo, que em vez de combater a discriminação na sociedade preferiu refleti-la.

No domingo (25/4), o Mail on Sunday publicou uma reportagem sobre Angela Rayner, vice-líder do partido do Partido Trabalhista, parlamentar aguerrida que defende suas ideias sem as mesuras dos ingleses da elite como Boris Johnson, educado na sofisticada Eton e formado em Oxford.

O jornal diz ter ouvido em off de parlamentares conservadores a afirmação de que Rayner utiliza atributos físicos para distrair Johnson durante os embates entre os dois partidos, sobretudo quando substitui o líder Keir Starmer na sabatina semanal.

Ali, cruzaria e descruzaria as pernas ao estilo Sharon Stone no filme Atração Fatal, valendo-se da configuração em que lideranças da oposição e do governo sentam-se de frente uns para os outros.

A razão seria a falta de capacidade intelectual para confrontar a sapiência de Johnson, já que largou os estudos aos 16 anos para trabalhar. Assim, usaria as pernas.

Para confirmar a suposta veracidade da história, o jornal cravou que ela teria admitido a prática em conversa informal com uma das fontes da matéria.

A história virou um escândalo político. Não há sinais de que Boris Johnson esteja por trás ou endosse as declarações. Mas elas foram feitas por integrantes do partido liderado por ele.

Parlamentares e jornalistas têm compartilhado episódios de assédio e abusos físicos por parte de parlamentares. Há várias investigações em curso no Parlamento.

Embora a matéria tenha sido feita por um jornal, práticas da mídia entraram na linha de tiro. Em apenas um dia, mais de 5 mil reclamações foram protocoladas no IPSO, órgão de controle da mídia impressa.

Integrante do Associated Newspapers, de propriedade do respeitado Lord Rothemere, herdeiro do jornal fundado por seu bisavô, o Mail on Sunday (versão dominical do Daily Mail) apoia o Partido Conservador. Críticas aos trabalhistas fazem parte da linha editorial.

Mas será que, sob padrões jornalísticos, a matéria pode ser classificada como crítica? O conjunto da obra sugere mais a ridicularização de uma mulher que não faz parte da elite, usando um recurso que não combina com a sua biografia.

Mail on Sunday: sexismo e misoginia

Outra discussão é sobre o off, que de certa forma isenta o jornal de responsabilidade por uma notícia mesmo quando é editada de forma a levar o leitor a crer nela.

Informantes são essenciais para o jornalismo investigativo. Mas revelações precisam ser confirmadas ou embasadas em fatos e documentos.

Apesar de criticados por excessos, os tabloides fazem às vezes um trabalho relevante. No caso do Partygate (festas na sede do governo durante o lockdown), vários furos foram dados por eles, confirmados por trocas de e-mails e imagens.

Não foi o que aconteceu agora. A acusação foi negada por Rayner antes da publicação, inclusive a suposta conversa em que teria admitido usar as pernas. Ela implorou para que a matéria não saísse, em nome dos filhos adolescentes que não mereciam ver a mãe retratada dessa forma, sem sucesso.

O Mail usou o “jornalismo declaratório”, em que as duas partes foram mencionadas, como se fosse suficiente sob a ótica da responsabilidade da mídia.

Rayner ficará marcada como a parlamentar da história das pernas. E mudou a conduta, coisa que nenhuma mulher deveria ter que fazer. Em uma entrevista na terça-feira, trocou as habituais saias por calças compridas.

O chefe do Parlamento ameaçou revogar a credencial do editor de política do Mail, Glen Owen, que assina a matéria. E convocou o diretor de Redação para uma reprimenda.

O Mail reagiu invocando liberdade de imprensa e independência da mídia. E disse que não vai.

Vale lembrar que o Mail (considerando edição de domingo e da semana) só perde em circulação para o Metro, gratuito. E que a circulação de domingo quase bate a da semana toda. Ou seja, muita gente teve acesso à “reportagem”

A reflexão aqui é se liberdade e independência são salvo-condutos para publicar qualquer coisa, incluindo suspeitas sem provas e negadas pelos envolvidos.

O caso é um retrocesso diante de tantos avanços em diversidade e inclusão na mídia britânica. Jornalistas e veículos responsáveis não mereciam isso, em uma era em que a falta de confiança na imprensa ameaça a todos.


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