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sexta-feira, dezembro 6, 2024

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Longo, o homem que mandava seguir a nuvem

Por Moacir Assunção

Quando soubemos, no caderno de Geral do Diário Popular, em meados de 1996, que o nosso futuro chefe seria um sujeito chamado José Luiz Longo, que desconhecíamos totalmente – a não ser o fato de que ele era próximo do diretor de Redação Josemar Gimenez, com quem havia trabalhado junto em O Globo –, certamente todo mundo pensou algo parecido: mais um burocrata para nos infernizar. Brincávamos dizendo que de uma coisa a gente tinha certeza: ele devia ser um cara alto e longilíneo, com aquele sobrenome. Quando o vimos, semanas depois do anúncio, todo mundo se surpreendeu com aquele homem baixinho, nervoso, com uma barba permanente em um rosto que denotava inteligência e sagacidade. Ato contínuo, ganhou dos repórteres-fotográficos, sob a liderança do gozador Rubens Gazeta (alguém que, com esse sobrenome, nasceu para trabalhar em jornal), o apelido de Toulouse Lautrec – referência ao pintor francês que viveu entre 1864 e 1901 e se tornou conhecido por ter revolucionado o estilo dos cartazes publicitários em sua época e por sofrer de uma doença recessiva que o transformou num homem adulto com pernas curtas de criança, medindo apenas 1,52m. De fato, ambos tinham características físicas em comum, como a barba, os óculos e a pequena estatura.

Aos poucos, fomos descobrindo que, se Toulouse Lautrec foi um gênio em sua época, ao pintar os cartazes de aviso do famoso Moulin Rouge, casa de espetáculos da boemia parisiense, de um modo completamente incomum, poder-se-ia dizer algo semelhante de Longo, um gênio em encontrar novos e interessantes ângulos para as matérias. Eu, então um jovem jornalista recém-formado, estava substituindo um repórter mais velho e experiente que convalescia de uma doença e, de cara, senti que ele gostou de mim. Houve uma tragédia causada pelas chuvas na região do Ipiranga e, junto com a colega Montserrat González, fui lá cobrir. Descobri, depois, que ele havia pedido para que ela, uma excelente repórter, acompanhasse meu trabalho. “O rapaz veio de assessoria de imprensa, sabe como é”, justificou. No fim do dia, a colega ofereceu um relatório muito favorável sobre minha atuação na reportagem.

Ele começou, então, a me encomendar matérias interessantes, boa parte ligadas a questões históricas, que havia percebido que eu gostava. Fui fazendo-as da melhor forma possível. Poucos meses depois que ele entrou, fiquei sabendo que o colega adoentado ia voltar, já estava recuperado. Perderia, então, o emprego. Coisas da vida, problema algum, sabia que seria provisória minha estada naquela que era uma fábrica de fazer bons repórteres, o Dipo, como chamávamos o jornal e estava feliz por ter aprendido em meses o que levaria muitos anos para aprender. No entanto, outra colega, creio que a Alessandra Pereira, me disse que ele havia reagido desfavoravelmente à ideia da volta do repórter. “Não vou abrir mão do Moacir, de jeito nenhum”, afirmara. Acabei ficando… e me tornei, de fato, repórter nessa época. Comprovei, na prática, a máxima de Gabriel García Márquez, segundo a qual jornalista é “a melhor profissão do mundo”.

Aos poucos, Longo tornava-se querido e admirado pelos repórteres do Dipo, uma turma que não perdia para ninguém em termos de cobertura, batendo com folga, especialmente em Cidades, Esporte e Polícia, os colegas de redações então poderosas como Estadão e Folha. E o chefe, também ativista dos direitos humanos e um dos fundadores do coletivo Democracia Corinthiana, sempre sugerindo pautas interessantes e inéditas, como já fizera em O Globo e no O Estado de Minas, onde trabalhou também. Lembro-me que, uma vez perguntou-me se Rego Freitas, nome da rua onde fica o nosso sindicato, era parente do Bento Freitas, rua vizinha. Queria fazer uma matéria com o mote “unidos para sempre”. Não eram, viveram em épocas diferentes.

Longo, que perdemos em 22 dezembro de 2019, aposentado, mas ainda em atividade, era de fato um mestre na pauta jornalística. Sacava da cartola, como um mágico, ideias geniais para transformar em texto de jornal. Dizia algo que repito para meus alunos hoje: a notícia está em todo lugar, basta observar.

Pouco mais de um ano depois, fez-me uma sugestão: queria criar uma pequena coluna no jornal, que sairia todo sábado, na qual contaríamos a história de um bairro. Morador da Zona Norte toda sua vida, ele sabia da importância dos bairros para uma cidade gigante como São Paulo, na qual, muitas vezes, a pessoa vive em um ou dois distritos, sem precisar deslocar-se para praticamente nada. Aceitei o desafio e começamos pela Mooca, região emblemática da cidade que, uma década depois, se tornaria quase uma parceira, já que comecei a ministrar aulas na Universidade São Judas Tadeu, que fica na Mooca e é um marco da região. Foi uma verdadeira aventura essa coluna, que batizamos de Conheça seu bairro. Em pouco mais de dois anos, contamos a história de nada menos que 120 bairros da capital. Descobri que tinha gente que colecionava os textos, outros que os mandavam para parentes em outras regiões. Conheci personagens interessantíssimos, muitos dos quais levei para o caderno Seu Bairro, do Estadão, no qual iria trabalhar depois. Enfim, a coluna fez-me conhecer São Paulo, algo que não tem preço.

Outra história curiosíssima, que o amigo Josmar Jozino conta em seu livro Meio que em off (Letras do Brasil), foi o texto que fiz sobre um bode fantástico que dava leite. Bicho enorme e forte, ele era hemafrodita e vivia em um sítio na cidade de Brazópolis, sul de Minas. Foi missão passada pelo Longo a partir de um sujeito meio louco que apareceu no jornal – e foi conosco até o lugar. Ele me disse na volta que havia sugerido ao prefeito da cidade que “desapropriasse” o animal. Parecia história do Festival de Besteiras que Assola o País (Febeapá), do saudoso Stanislaw Ponte Preta, que, em tempos de Bolsonaro, teria muito a escrever se estivesse por aqui.

Em 1999, quando fui trabalhar no Estadão, o fato de ter passado pelo Dipo era uma distinção importante. Os colegas que me conheciam da rua diziam que “se foi do Dipo é bom, pode confiar” para os novos chefes que ainda não tinham tomado contato comigo. Encontrei no Estadão e no JT gente como Josmar, Fábio Diamante, Marici Capitelli, Robson Morelli, entre outros, que eram, como eu, egressos do Dipo. Entre os motoristas, então, quase todos haviam trabalhado no matutino da Major Quedinho, nome que relembra um personagem da Guerra do Paraguai. Estava em casa, enfim.

Voltei a ouvir falar do Longo novamente porque ele havia mandado uma repórter, que depois soube tratar-se da Marici, para “seguir uma nuvem de chuva”. A razão para tão esquisito pedido era que o Dipo havia tomado um furo no dia anterior e isso o Longo não admitia, ainda mais em tragédias da cidade, algo em que éramos imbatíveis. A pobre repórter teve que ficar acompanhando, de carro, o deslocamento de uma nuvem escura. E a história virou um folclore do jornalismo. Era um pombo sem asa ou PSA, expressão com a qual Josmar designava as pautas mais estranhas.

Quando lancei o meu livro sobre a Revolução de 1924 – São Paulo deve ser destruída, a história do bombardeio à cidade na Revolta de 1924 (Record) –, tive o prazer de contar com a presença dele no debate na Livraria da Vila da Fradique Coutinho. Ele me falou, então, a frase que jamais esquecerei: “Quando lia seus textos da história dos bairros, pensava: esse rapaz é um historiador. Agora está aqui o historiador”. Ainda me sugeriu escrevermos juntos um livro sobre a Mooca. Foi a última vez que o vi com vida. Nos estertores de 2019, um choque: pelo Facebook a colega Gláucia Padilha avisava e, na sequência, o também colega Dario Palhares confirmava que ele havia morrido.

Longo, o grande repórter e chefe de Reportagem, uma das pessoas que mais reconheceu meu trabalho, jazia no velório de um cemitério da sua querida Zona Norte, na presença da mulher, Célia, dos filhos e da mãe. Mesmo adoentado, me disseram, não parava de bolar coisas para o jornalismo. Ainda era jovem, tinha apenas 62 anos, e se permitia sonhar. Foi enterrado em meio a palmas e sons da música Epitáfio, dos Titãs, que diz assim: “Devia ter amado mais, chorado mais, ter visto o sol nascer…”. Agora, como diz o colega Nelson Nunes, está seguindo nuvens no céu, na grande redação celestial. E, certamente, bolando pautas sensacionais. Abraço, amigo, siga em paz… tenha a certeza de que todos aprendemos muito com você.

Moacir Assunção

A história desta semana é uma colaboração de Moacir Assunção, jornalista, historiador e professor do curso de Jornalismo da Universidade São Judas Tadeu (SP).

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Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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