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sexta-feira, abril 26, 2024

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Memórias da Redação: A vingança do Cabral

A história desta semana é novamente uma colaboração de Milton Saldanha (foto), que edita o jornal mensal Dance, dedicado à dança de salão, e mantém um blog de crônicas sobre assuntos variados. Ele diz que história é uma lenda da velha Última Hora, onde foi foca:

“Nunca chequei se foi verdade, mas é tão boa que mesmo sendo mentira vale a pena”. A vingança do Cabral A Última Hora, fundada e dirigida por Samuel Wainer, formava uma rede nacional. Com o mesmo título, logotipo em azul, identidade visual e seções, até onde lembro era editada em Rio, São Paulo, Recife, Porto Alegre.

Depois do golpe de 1964 foi fechada e mais tarde reaberta em São Paulo. Em Porto Alegre resultou no atual Zero Hora. Fui repórter da Última Hora nessa segunda fase, trabalhando com Samuel Wainer, nome lendário e polêmico do jornalismo brasileiro, que colecionava tanto amigos como inimigos. Só que nessa fase ele não era mais dono do jornal e sim empregado do Octavio Frias de Oliveira, do grupo Folha de S.Paulo, que havia adquirido o título.

Naquela redação convivi diariamente com nomes notáveis: Plinio Marcos, Antonio Contente, Lourenço Diaféria e um vasto time de jornalistas com muita estrada e quilometragem percorrida. Eu estava naquela fase de transição, já um bom repórter, mas ainda meio foca.

Já estava no jornal quando o Samuel Wainer assumiu a direção. Lembro-me que o Frias chegou com ele na imensa e ruidosa redação, onde vozes se misturavam ao teclar frenético das velhas máquinas de escrever. Bateu palmas pedindo silêncio: “O bom filho à casa torna”, disse Frias, anunciando o novo diretor. Ali me aproximei de alguns veteranos, quase tietagem, em busca das suas histórias e experiências.

Um deles era Cabral, que fumava cigarro com piteira e gostava de vestir coloridas camisas de seda. Cabral, diziam, foi uma lenda do jornalismo policial. Não sei se era verdade, mas contavam que chegou a localizar bandido em morro antes da polícia. Denunciava e ficava no local esperando a prisão para cobrir como furo. Dele contavam também o seguinte episódio: Mulherengo, Cabral gostava de cortejar moças bonitas com belos jantares, em restaurantes sofisticados.

Não tomava o cuidado de checar antes os preços, mesmo ganhando mal como todo mundo naquela época. E foi assim que levou mais uma para jantar, com direito a entrada, camarão, vinho italiano, sobremesa. Quando pediu a conta levou um susto. O preço era um absurdo, consumia boa parte do salário que ganhava num mês inteiro de trabalho. Para não dar vexame, aguentou no osso. Pagou com cheque, furioso, e se retirou com sua convidada.

Nos dias seguintes aquilo ficou martelando na cabeça de Cabral.  Estava realmente revoltado com o absurdo da conta. “Isso não vai ficar assim”, pensou, e teve uma ideia. Chamou um contínuo da redação, prometeu-lhe uma caixinha, e pediu que fosse ao mesmo restaurante para fazer reserva de jantar para quatro pessoas. Mandava até um cheque como sinal, por garantia, e pediu ao rapaz que voltasse com a nota fiscal.

Dia seguinte, quase duas horas antes do horário previsto na reserva, requisitou uma Kombi da frota do jornal e saiu. Mandou que o motorista seguisse para os baixos de viadutos da Zona Oeste onde precariamente se abrigavam grupos de mendigos. Chegou e anunciou: “Estou convidando três de vocês que queiram fazer o melhor jantar das suas vidas. É só embarcar, é tudo por minha conta”.

O grupo se formou em torno da Kombi, todos queriam ir. Cabral então selecionou os três privilegiados, procurando entre eles os mais feios, esfarrapados e mal-cheirosos. O restaurante naquele horário já tinha bom movimento e a mesa de Cabral estava prontinha, com cartão de “reservada”.

Quando ele entrou com seus convidados foi um choque geral. Silêncio. Garfos e facas pousaram silenciosos nas mesas. Olhares incrédulos de todos os lados. Cabral acomodou-se com os mendigos e pediu o cardápio para os pedidos. O dono, ou gerente, surgiu do nada: “O que o senhor está fazendo? Não pode ficar aqui com essas pessoas. Vou chamar a polícia”. E Cabral: “Isso, chama a polícia, é isso que eu quero, escândalo. Vou chamar também meus colegas dos jornais. Discriminação racial e social é crime. Estes senhores são meus convidados, cidadãos como qualquer brasileiro, e parte do jantar já está até paga, está aqui a nota fiscal”.

Nesse meio tempo, vendo a encrenca armada, e não aguentando o odor que se espalhou pelo recinto, mais da metade dos clientes já se retirava, uns rindo e aprovando, outros furiosos. O gerente capitulou. Mandou servir, postando-se de braços cruzados e cara amarrada a alguns metros da mesa.

O jantar foi uma cena dantesca, de bocas abertas desdentadas mastigando vorazes, líquidos e babas escorrendo pelos cantos dos lábios, mãos imundas avançando sobre copos e travessas cintilantes. Os garçons ficaram num grupo à distância, alguns usando lenço para tampar o nariz, outros de costas para a mesa, repugnados. E Cabral recostado na cadeira, fumando com sua piteira, sorrindo, feliz.

Quando terminaram, fartos, e sozinhos na casa, o gerente se aproximou. “Senhor Cabral, pelo amor de Deus, nunca mais faça isso de novo. O senhor pode nos arruinar. Só hoje perdi vários clientes. Mas a conta está certa, o senhor não precisa pagar mais nada. Volte quando quiser, traga sua noiva, será convidado da casa”. “Jamais – replicou Cabral – vocês me roubaram descaradamente da outra vez e agora dei o troco. Estamos quites. Agora fique tranquilo, nunca mais pisarei nesta casa”.

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