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quinta-feira, maio 2, 2024

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Memórias da redação ? Meu dia com Antonio Ermírio

Recebemos mais uma colaboração que mostra o relacionamento do empresário Antonio Ermírio de Moraes, recentemente falecido, com a imprensa. Ela é de Milton Saldanha, que edita o jornal mensal Dance, dedicado à dança de salão, e mantém um blog de crônicas sobre assuntos variados. Meu dia com Antonio Ermírio Em março de 1990 eu estava tocando minha microempresa e vivendo praticamente de frilas. Foi quando Collor assumiu e soltou seu bombástico plano de acabar com a inflação “com uma única bala na agulha”, como dizia no seu estilo fanfarrão. Fui contratado pela Agência Estado como reforço para a cobertura e repercussões. E lá fiquei 60 dias fazendo isso, enquanto o País, perplexo, tentava entender o que estava realmente acontecendo. Julio Moreno era um dos principais editores da Agência e de cara me deu uma pauta cabeluda: mostrar o dia de um grande empresário paulista no primeiro dia de vigência do plano, 17 de março. Pensei: a matéria só terá graça se for um empresário muito famoso, e não apenas alguém conhecido só no meio empresarial. Antonio Ermírio não tinha a menor idéia da minha existência no mundo. Eu não era um dos poucos repórteres da sua confiança. Mas, atrevido, liguei para ele, na Votorantin, ali ao lado do Theatro Municipal, onde tinha seu escritório. E não é que o homem me atendeu pessoalmente? Expliquei a pauta, com toda a simplicidade, e tive que disfarçar a euforia quando respondeu: “Esteja amanhã, às 6h, para tomar o café da manhã comigo, na minha casa”. Requisitei carro da Agência para me pegar em casa às 5h, mas só para me levar: meu plano era colar no homem como um carrapato, anotando cronologicamente todo o seu dia. E foi o que aconteceu. O diabo é que chovia e fazia um frio danado. Como odeio acordar cedo, a primeira coisa difícil de assimilar foi como um sujeito tão rico e poderoso acordava tão cedo num dia horrível como aquele. Minha primeira surpresa, ao chegar, foi constatar que a segurança da mansão, pelo menos na aparência, limitava-se a um senhorzinho numa guarita. Como se fosse o guardinha noturno lá da minha rua. Fiquei plantado na sala, por quase meia hora, encolhido no meu terninho, apreciando os detalhes luxuosos da decoração. De repente, ele apareceu descendo uma escada, com o cabelo úmido de quem acabou de sair do chuveiro. Casaco marrom, calça de outra cor, e uma gravata larga, sem nada a ver com o conjunto. Moda masculina, definitivamente, não era sua preocupação. Cumprimentou-me como se eu fosse um velho conhecido e fomos para o café, numa copa ao lado. O café era bom, mas sem exageros, com pão e bolo, além de um suco. Quem nos servia era uma moça negra muito simpática, com uniforme azul marinho de doméstica. Ele brincou, dizendo que estava com tanto dinheiro no bolso quanto ela, agora eram iguais. Começava ali, nesse diálogo descontraído, tudo que eu precisava para fazer um belo texto. Ele própria dirigia seu carro, sem seguranças. Era uma perua Opala antiga, com cara de bem usada, pintura desbotada. Fomos pelas marginais. Ao longo do caminho Antonio Ermírio era reconhecido e cumprimentado a todo momento, respondendo com acenos simpáticos. A única coisa que me pediu foi que não publicasse que costumava andar sem seguranças. Prometi que não faria isso e cumpri a palavra, claro. Entramos na Atlas, que ele chamava de oficina. Notei que aquilo não estava agendado, porque os funcionários ficaram surpresos, inclusive o gerente, que logo se apresentou. Perguntou sobre algumas coisas da rotina e de lá fomos para seu escritório. Na cara de pau, entrei junto na sala e me postei num sofá. “Ele que me expulse, se quiser privacidade”, decidi. Mas não expulsou. Percebi que ele também estava curtindo minha pauta, com a vaidade de ser o personagem escolhido. Isso me facilitava tudo. Com o bloco e caneta, fui anotando seus diálogos ao telefone, recostado numa cadeira giratória de encosto alto. Era sobre a situação econômica. A cada momento com uma pessoa diferente, que eu não conseguia identificar. Mas isso era o de menos, o que importava mesmo era o que ele estava pensando e falando. Nosso almoço, numa sala ao lado, foi só para os dois. Comidinha simples, tipo marmitex. Tudo mostrava o despojamento do empresário, e ele era realmente assim. Não era um jogo de cena. Modéstia a parte, fiz uma matéria linda, que saiu no Estadão e no Jornal da Tarde. No JT, ainda com maior destaque. E sem assinatura, uma injustiça.     

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