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segunda-feira, maio 6, 2024

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Memórias da redação ? Jornalista não pode desligar

A história desta semana é de Almyr Gajardoni ([email protected]), profissional que em mais de 50 anos de atividade atuou, entre outros, em Folha de S.Paulo, Correio da Manhã, Veja, Jornal do Brasil, IstoÉ, Superinteressante, revista da Fiesp e suplemento D.O. Leitura, do Diário Oficial do Estado de São Paulo. É também escritor.  Jornalista não pode desligar Vou contar aqui o que me aconteceu em duas viagens ao exterior (coisa antiga), para deixar bem marcado para vocês um mandamento de nossa profissão que não pode ser negligenciado: jornalista nunca desliga. Você pode estar em férias, de licença para o casamento, preparando o enterro de sua mãe. Não importa, alguma coisa aconteceu, você tem de estar lá, caneta e papel na mão para anotar, câmera fotográfica ou de filmar em punho para ilustrar, sem direito a desculpas por um trabalho mal feito. Em 1968, eu estava na sucursal da Folha de S.Paulo em Brasília, encarregado da cobertura do Congresso Nacional. Havia uma entidade chamada Liga Parlamentar Internacional que periodicamente reunia, em algum lugar do mundo, representantes dos parlamentos nacionais para uma conversa fiada que nunca levava a nada. Naquele ano fui selecionado, entre todos os jornalistas credenciados no Congresso, para acompanhar a delegação brasileira. A reunião seria em Dacar, capital do Senegal, na África. Tinha uma passagem de primeira classe, viajei na segunda classe e assim pude encompridar a viagem para ir conhecer a Europa, principalmente a Itália, terra de meus quatro avós.                  Desembarquei em Roma, ali fiquei uns dez dias, deslumbrei-me com o teto da Capela Sistina, a biblioteca do Vaticano, a então famosíssima Via Veneto. Peguei um trem para o norte, desembarquei em Florença, e aí, sim, foi um deslumbramento que carrego pelo resto da vida, mas não vem ao caso falar dele aqui. Naturalmente segui viagem até Veneza, logo ali adiante, onde fiquei três dias igualmente deslumbrantes e peguei um trem noturno que me deixaria em Paris, na manhã seguinte. Paris, ao contrário de Roma, estava uma chatice: chuva sem parar, frio, preços altos, carros da polícia e dos bombeiros correndo para todos os lados, com as sirenas berrando, pilhas de paralelepípedos arrancados das ruas, jovens correndo de um lado para o outro. Fiquei num hotel próximo ao Arco do Triunfo e já matei, de saída, um dos tantos cartões postais da cidade. Passei rapidamente pelos outros, fiquei um dia inteiro andando pelo Louvre, fiquei bem meia hora olhando a Mona Lisa e decidi: não tinha paciência para aguentar aquele bagunça, os ônibus mudavam de trajeto, não se conseguia táxi em lugar nenhum. Comprava jornais para saber se havia alguma notícia do Brasil, não me importei com o que escreviam sobre aqueles acontecimentos na cidade, que ignorei olimpicamente.             Segui para Nova York, etapa final da viagem, onde pretendia apenas comprar duas lentes grande angular e uma teleobjetiva para minha câmera fotográfica. E, assim, nas duas noites que ali passei, pude assistir, na televisão do quarto do hotel, o amplo noticiário sobre a grande revolução de hábitos e costumes que abalava Paris, de onde eu tinha fugido, e logo abalaria o mundo todo com suas palavras de ordem inovadoras – “é proibido proibir”, “a imaginação ao poder” e coisas do gênero. Se não tivesse fugido do frio, teria feito, com certeza, a matéria da minha vida, antes que aquilo começasse a interessar aos nossos jornais e revistas e aos estudantes aqui no Brasil. – x –             Em 1976, era editor de Política da Veja. O ditador do período, Ernesto Geisel, visitaria o Japão, país interessadíssimo em estreitar seus laços conosco para ampliar seu mercado internacional (o Brasil tinha o mesmo interesse) e a embaixada japonesa convidou vários jornais de São Paulo, Rio, Manaus, Belém, Pernambuco, Rio Grande do Sul, e a Veja para uma visita prévia ao país. A tarefa ficou comigo e para lá segui, um mês antes de Geisel. Haveria um programa oficial para a estada dos jornalistas convidados, que terminaria dez dias antes da chegada do presidente brasileiro. Todos os outros jornalistas da comitiva voltaram para o Brasil, ao fim do nosso programa, só eu fiquei esperando a chegada de Geisel.             Nesse curto espaço de tempo aconteceram dois fatos notáveis. No dia 9 de setembro morreu ali pertinho o lendário Mao Tsé Tung, líder da revolução comunista da China e naquele momento ainda governante do país. Dois dias depois, um piloto russo (vamos lembrar que Rússia, ainda comunista, e Estados Unidos, estavam no auge da Guerra Fria) simplesmente aterrissou num aeroporto secundário do Japão com o seu MIG-25, um poderoso avião de caça, novinho em folha, ainda desconhecido no Ocidente, e pediu asilo aos Estados Unidos.             Cheguei a sonhar em ir para a China, consegui localizar um jornalista brasileiro que lá vivia, mas ele me desiludiu: para ir àquele país nos tempos normais, não bastava ir a uma embaixada e solicitar um visto de entrada, como se faz em todo mundo: era preciso obter um convite oficial do governo chinês. Naquele momento conturbado, naturalmente, nem pensar.             Consegui enviar para Veja montes de informações sobre os dois acontecimentos que arranquei de jornais japoneses escritos em inglês, noticiário da televisão também em inglês e assim abasteci a editoria de Internacional aqui em São Paulo. Alguns dias depois, Geisel desembarcou em Tóquio, acompanhei toda a sua movimentação, inclusive a viagem no Trem Bala até Quioto, a antiga e histórica capital do país, mais ao norte. Aí estava abastecendo a minha Editoria de Política. Pelo menos cinco vezes compareci com gigantescas pilhas de laudas datilografadas (computadores e internet ainda não haviam sido inventados) para enviar o material para São Paulo, via telex.             E aí presenciei o que até hoje me parece um milagre. O operador falava bem o inglês, mas nada de português. Era fácil me entender com ele conversando. Mas quando lhe entregava o maço de papéis, ficava perplexo: ele punha a folhinha de lado, começava a bater no teclado com a naturalidade e facilidade que teria para escrever em japonês, sem jamais interromper o trabalho. Ele não entendia nenhuma palavra que estava escrevendo, assim, copiava letra por letra. A toda velocidade. Sem erros, conforme pude constatar no imenso rolo de papel que ele me entregava findo o trabalho.    

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