Por Luciana Gurgel

Luciana Gurgel

Para o Brasil, que perdeu Marielle Franco e tantos outros políticos, o assassinato de um parlamentar não espanta. No Reino Unido é coisa rara − foram nove em mais de 200 anos.

O esfaqueamento de David Amess, em 16/10, reacendeu o debate sobre a agressividade na política inflamando a sociedade, o assédio online, o anonimato nas redes e a radicalização de jovens pelas mídias sociais.

O caso dele não parece ligado às duas primeiras questões. Afável e defensor dos direitos dos animais, Amess não recebera ameaças. Era adorado na cidade costeira que representava.

Por não ocupar cargos relevantes no Partido Conservador, não era associado à polarização que tomou conta do país devido ao Brexit, incensada pela tropa de choque do primeiro-ministro Boris Johnson.

David Arness

A morte aconteceu cinco anos depois do caso de Jo Cox, parlamentar anti-Brexit. Ela foi assassinada na época do referendo por um nacionalista que gritou “Viva a Grã-Bretanha” na hora do crime.

Antes de Cox, cinco parlamentares haviam sido vítimas de atentados do IRA entre 1979 e 1990, até que a paz foi selada.

Brexit, a ruptura

Mas veio o Brexit e rachou o país, exacerbando o nacionalismo. A temperatura ferveu nas ruas e no Parlamento, na época do referendo e às vésperas da saída do bloco, em 2019.

Manifestantes pró-Brexit exibiam símbolos de extrema direita, entoando cânticos que remetiam a seitas medievais.

A narrativa política era baseada na defesa da soberania, dos empregos e dos valores nacionais. Parte da mídia embarcou, insuflando guerra cultural, aversão a imigrantes, a minorias e à Europa.

Alguns veículos não desembarcaram até hoje. Um artigo de opinião no Daily Telegraph de terça-feira (18/10) tem um título pouco amável: “A União Europeia é um império falido que condenou a si próprio à irrelevância”.

Isso mostra a herança agressiva do Brexit. Johnson conserva o tom ufanista, com falas incendiárias, modelo adotado por alguns de seus auxiliares próximos.

Manifestação pró-Brexit em Londres (2019) – Crédito: Luciana Quintanilha

Contudo, os conservadores não estão sozinhos na descortesia.

Há um mês, a parlamentar trabalhista Angela Rayner chamou os conservadores que comandam o país de “scum” (escória) durante a convenção do partido. E não retirou o que disse.

No dia seguinte à morte de David Amess, viu-se uma cena rara: Johnson e seu opositor Keir Starmer foram juntos depositar flores em memória do político.

O speaker do Parlamento tomou a frente na campanha para acabar com a linguagem agressiva na casa e prometeu impedir insultos. Pode ser que algo mude por lá, e quem sabe também na mídia mais engajada.

Redes sociais, porta de entrada para a radicalização

Já nas mídias sociais o desafio é maior, porque não se restringe às grandes plataformas. A radicalização floresce no submundo da dark web.

Mas para muitos, ela começa nas redes populares, que são acusadas de não fazerem o suficiente para conter o avanço de teorias conspiratórias, facilitado pelo anonimato dos usuários.

O autor do crime, Ali Harbi Ali, de 25 anos, não é um excluído social que virou lobo solitário. Filho de somalianos, nasceu no Reino Unido e estudou em boas escolas.

Ele não apresentava sinais típicos de terroristas, nem tinha exemplo familiar de radicalismo.

O pai, Harbi Ali Kulllane, era assessor de comunicação do ex-presidente da Somália e conhecido como liberal. Ironicamente, tem histórico de militância contra o extremismo somaliano.

Por isso as redes entraram na dança. Estudos mostram que a pandemia virou caldo de cultura para o radicalização de jovens, que ficaram mais tempo isolados e expostos a teorias da conspiração.

A inteligência britânica os chama de bedroom radicals (radicais do quarto).

Uma nova reportagem do Wall Street sobre o Facebook mostra que a inteligência artificial da empresa não consegue capturar quase nada do discurso de ódio que circula na plataforma.

A ONG britânica Hope Not Hate fez um estudo mostrando uma enormidade de conteúdos antissemitas nas redes sociais, e acha que jovens estão sendo apresentados a essas ideias por elas.

A polícia diz não saber ainda o motivo do crime. Especula-se uma ligação com o grupo al-Shabab, ligado ao Estado Islâmico. Poderia ter alguma relação com entendimentos do parlamentar com o governo do Catar para atrair investimentos para a cidade, postados nas redes sociais.

Mas não há um só culpado.

A combinação de discurso de ódio nas redes, faroeste na dark web, políticos que deveriam dar o exemplo inflamando a sociedade e parte da mídia endossando a intolerância cria a tempestade perfeita.

A morte de Amess pode acelerar a aprovação da regulamentação britânica das redes sociais, a Online Harm Bill, já chamada de David’s Law.

Por mais rigorosa que seja, no entanto, não será capaz de reverter sozinha um fenômeno de raízes profundas, que parece cada vez mais estar tornando carrancuda a fisionomia de uma nação célebre pela cortesia. Fenômeno que não é exclusivo do Reino Unido.


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