Por Luciana Gurgel

Luciana Gurgel

A mais recente vítima da dificuldade de encontrar o tom certo para noticiar temas que envolvem minorias ou grupos marginalizados é o New York Times, que desde a semana passada atravessa uma crise motivada por sua cobertura sobre questões relacionadas a pessoas trans.

Em uma ação coordenada, a direção do jornal recebeu no dia 16 de fevereiro duas cartas disparando contra o tratamento dado a pessoas transgênero, considerado irresponsável e tendencioso.

Uma delas partiu da GLAAD (Aliança Gay e Lésbica Contra a Difamação, na sigla em inglês) e foi assinada por mais de 100 organizações, ativistas e celebridades do showbiz. Um caminhão com um letreiro luminoso foi estacionado diante da porta do jornal para provocar impacto.

No entanto, o maior impacto foi causado pela outra carta. Endereçada a Philip Colbert, editor de Padrões, foi assinada por mais de mil articulistas antigos, atuais e integrantes da equipe de jornalistas do Times.

Citando exemplos, eles afirmam que, “nos últimos anos, o jornal tratou a diversidade de gênero com uma mistura estranhamente familiar de pseudociência e linguagem eufemística”. Dizem que há uma escolha seletiva de fontes e falhas ao apontar quem são os autores de certas opiniões.

No final, reclamam que “não há cobertura sobre os milhares de pais que simplesmente amam e apoiam seus filhos [trans], ou sobre os profissionais do New York Times obrigados a suportar um local de trabalho tornado hostil pelo preconceito − um período de tolerância que termina hoje”.

Ao desafiar um princípio elementar de gerenciamento de crises − evitar colocar mais lenha na fogueira e dialogar em vez de confrontar − o jornal deu passos arriscados.

No dia seguinte às duas cartas, publicou um artigo assinado pela colunista Pamela Paul em defesa da controversa escritora J.K.Rowling, renegada por suas manifestações sobre pessoas trans até por atores que alcançaram o estrelato representando personagens de seu Harry Potter.

Houve também reação interna, com um e-mail do editor Joe Kahn pedindo calma. Bem pouco calmo, entretanto, ele avisou que “não seria bem-vinda nem tolerada a participação de jornalistas do Times em protestos organizados por grupos de defesa ou ataques a colegas nas mídias sociais e outros fóruns públicos”. Na visão do editor, a cobertura de questões que envolvem transgêneros, inclusive nas matérias do jornal destacadas na carta, é relevante, apurada e “escrita com sensibilidade”.

Mas parece ter faltado sensibilidade ao lidar com um tema tão delicado, que envolve não apenas políticas públicas, mas a própria situação individual de pessoas trans ou que tenham parentes ou amigos trans e discordem da forma como o jornal vem tratando o assunto.

A crítica é bem formulada, e compara a cobertura atual do New York Times à da homossexualidade e da Aids. Eles recordaram uma manchete de 1963 que dizia: “O crescimento da homossexualidade aberta na cidade provoca ampla preocupação”, e anunciava que a cura gay estava a caminho.

Mais recentemente, na década de 1980, o jornal não teria dado matérias de capa sobre a Aids até 1983, quando o vírus já havia matado 500 nova-iorquinos. E usava eufemismos nos obituários, como “desordem rara”, para explicar a causa da morte.

Agora, diz o manifesto, o jornal está “seguindo a liderança de grupos de ódio de extrema-direita ao apresentar a diversidade de gênero como uma nova controvérsia que justifica legislações punitivas”.

Um exemplo citado é o de um parecer do procurador-geral de Arkansas em defesa de um projeto de lei criminalizando certos procedimentos médicos para menores de idade, como bloqueadores de puberdade. O procurador usou três reportagens do New York Times para fundamentar sua opinião.

A crise mostra que os desafios da mídia em diversidade e inclusão vão muito além de aumentar a participação de grupos marginalizados na equipe e adotar manuais de linguagem inclusiva, que são necessários mas não suficientes.

O que se expôs no caso do New York Times é a importância da linha editorial, que não precisa de palavras ofensivas para ofender e desagradar os que defendem um mundo mais inclusivo. E que, no caso de um veículo influente como o Times, pode ter consequências importantes para a sociedade.


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