Por Assis Ângelo

Você, meu amigo, minha amiga, já ouviu falar de Orígenes Lessa?

Lessa foi um dos mais importantes escritores brasileiros, autor do clássico juvenil O Feijão e o Sonho. Escrita em 1938, essa obra foi premiada várias vezes, inclusive pela ABL.

Orígenes Lessa

Interessantíssimo e tocante é o conto As Cores. Nesse conto, Lessa ataca a sociedade por alimentar o racismo e o preconceito. Aqui no episódio ele fala sobre uma jovem cega, que finda por apaixonar-se por um negro. O pai não deixa.

Muita coisa horrorosa aconteceu e continua acontecendo mundo afora.

Na vida real, não são poucos os exemplos horrorosos de brancos e poderosos maltratarem as pessoas negras. Homens e mulheres.

Em 1526, um casal de etíopes recusava-se a gerar filhos, para não gerar novos escravos. Por razões quaisquer, esse casal, Cristófaro e Diana, terminou trazendo ao mundo um filho. Nome: Benedito.

O tempo passou, o menino cresceu e virou São Benedito, um negro que apanhou pra danado.

São Benedito

Benedito morreu com 63 anos de idade. E diz a lenda que ele chegou a ressuscitar pelo menos duas crianças e a multiplicar pães e peixes.

Benedito é considerado o padroeiro dos cozinheiros e da pobreza que sofre com fome.

Como se vê, o real e a fantasia estão o tempo todo misturados.

Em 1904, o escritor negro Lima Barreto escreveu o conto O Pecado, publicado exatos 20 anos depois. Nesse conto o autor faz uso de personagens das bandas lá do Céu, do Eterno. Entram e saem rapidamente São Pedro, anjos e tal. Um dia, de manhãzinha, Pedro acorda e vai pro banheiro fazer o que deve ser feito. Depois passa pela biblioteca do Céu e, ocasionalmente, folheia um enorme caderno com os últimos nomes que lá chegaram como almas. Milhares. Lá pras tantas ele se depara com uma alma de 48 anos, que viveu muito certinha enquanto viveu na Terra, por isso merecedora de instalar-se ao lado de Deus. Inquirido por Pedro, o guarda-livros da biblioteca fez um muxoxo e disse que não era bem assim, que obedecia a ordens.

Resultado: a alma justa, benigna, santificada de 48 anos, não foi posta ao lado do Criador pelo simples fato de ser da cor preta!

Não é só na literatura de Lima Barreto que a questão racial é abordada.

O Brasil foi o último país a descravizar pessoas.

Essa é informação que dói na alma.

Pela primeira vez, o dia 20 de novembro foi considerado oficialmente data nacional: Dia da Consciência Negra. Isso ocorreu em 2024.

O dia 20 de novembro é o dia da morte de Zumbi.

Zumbi

Zumbi, na pia batismal recebeu o nome de Francisco.

Quem deu esse nome a Zumbi foi um padre que o criou: Antônio Melo.

Essa questão ainda hoje é discutida por muita gente boa.

Há nas cadeias do Brasil mais pretos e pardos do que brancos. E pobres de marré, marré, marré…

O médico Dráuzio Varella surpreendeu os leitores brasileiros com o seu bombástico livro Estação Carandiru, lançado em 1999. Foi enorme a polêmica. Esse livro, como os dois outros que se seguiram, Carcereiros e Prisioneiras, talvez tenham contribuído para a decisão do então governador Geraldo Alckmin em demolir o velho presídio de que tratam os livros de Varella.

A leitura de Estação Carandiru dói e mexe com nossas ideias, principalmente no ponto que conta a invasão policial que resultou em 111 mortos.

Há muitas histórias nesse livro. Uma delas:

 

Mulher de cadeia casada jamais circula pela galeria, e para descer ao pátio, só acompanhada. Para casar, o marido deve estar em boa situação financeira, pois a ele cabe o sustento da casa; a ela, a submissão ao provedor. De forma velada, alguns condenam, mas a união é respeitada socialmente. O parceiro passivo não é considerado do sexo masculino. Nos estudos que conduzimos, não bastava perguntar se mantinham relações homossexuais. Era preciso acrescentar: e com mulher de cadeia? Antes das visitas íntimas, a homossexualidade era prolífica. Uma vez, dei o resultado positivo do teste de Aids para um ladrão desdentado e perguntei-lhe se havia usado droga injetável no passado:

− Nunca. Peguei esse barato comendo bunda de cadeia. Muita bunda, doutor!

 

A vida na cadeia é uma vida inimaginável pra quem está fora dela.

Varella não minimiza nenhuma piscada registrada por seus olhos.

Pela memória de Dráuzio Varella circulam em Carandiru problemas profundos e almas de gente, de pessoas.

Na cadeia, a vida de um pobre preto ou de uma pobre preta é a mesma. Dura, duríssima.

Imaginem, pois, uma mulher negra, gay, prostituta, pobre…

A sociedade, não só no Brasil, condena de olhos fechados a miséria de quem vive pobre e aparentemente sem futuro. Principalmente quando esse pobre sem futuro é negro ou negra.

Nessa linha de realidade e interpretação segue Dráuzio Varella no livro Prisioneiros.

Nessa mesma toada segue a leitura do livro Presos que Menstruam. A autora, Nana Queiroz, leva às páginas a história de mulheres que caem no crime e são presas e condenadas a cumprir pena na cadeia. Começa com Júlia, que cedo perde a infância, engravida e coisa e tal. Nana não mede palavras pra contar o que conta nesse livro.

 

Pois é, a realidade é terrível aqui e alhures. Mas até no mundo da fantasia há histórias que nos levam a pensar e a sofrer por contingências diversas.

 

Foto e ilustrações de Flor Maria e Anna da Hora


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