Por Luciana Gurgel

Luciana Gurgel

Para os descrentes do poder transformador da mídia nesses tempos em que tantos evitam as notícias e duvidam das informações que recebem, um programa de TV no Reino Unido está provando que ele existe, mesmo que a narrativa não seja a do jornalismo tradicional.

Mr. Bates x The Post Office, uma nova série da ITV, tirou do ostracismo o caso Horizon, uma história recente de erro judicial e corporativo tão escabrosa que até parece inventada por um roteirista malvado retratando injustiças da era medieval.

Lançada em 1º de janeiro e dividida em quatro capítulos, a série da ITV não traz novas denúncias. Seu mérito foi apresentar os fatos reais amplamente documentados pela imprensa em forma de drama, contagiando o país e quebrando a indiferença em torno do caso.

Não é a primeira a fazer isso, mas seu impacto mostra que a fórmula funciona.

Post Office é a empresa pública que administra o sistema postal britânico. Em uma combinação mortífera de más práticas corporativas, inação do governo, indiferença do Parlamento e falhas da Justiça − sem contar um possível acobertamento −, mais de 3 mil pequenos empresários que operavam agências da rede, a maioria dentro de lojinhas como padarias, tiveram suas vidas devastadas após serem acusados de roubo e fraude entre 1999 e 2015.

As contas não batiam com o que o sistema mostrava, mas o motivo era um erro do software Horizon, fornecido pela Fujitsu.

Apesar de evidências de falha no sistema, pelo menos 700 sub-postmasters perderam a licença e foram processados.

Muitos foram presos − até uma grávida −, quatro cometeram suicídio e a maioria teve a vida arrasada, arcando com dívidas impagáveis e sendo humilhados como criminosos perante famílias, amigos e comunidades.

Mr. Bates x The Post Office (Crédito: Divulgação)

Em 2021, um processo movido pelo ex-licenciado Alan Bates em nome de um grupo que ele arregimentou para formar uma aliança chegou ao fim e comprovou a injustiça. Mas não a reparou.

Embora o processo tenha concluído que o Horizon tinha falhas e que a Post Office agiu com “segredo excessivo” sobre seus atos − leia-se recusa a fornecer informações e documentos −, nenhum executivo foi punido.

Pior: em  2019, quando as falhas já tinham se tornado públicas e processo tramitava, a então CEO da empresa, Paula Vennels, recebeu uma alta condecoração da rainha Elizabeth por serviços prestados.

A maior parte da multa imposta à Post Office na condenação foi para o bolso dos advogados que atuaram em troca de pagamento caso houvesse vitória.

Poucos licenciados foram indenizados. As condenações criminais não foram revertidas. Uma comissão parlamentar arrasta-se há 22 meses e seguia morna até duas semanas atrás.

Dramatização criou empatia e provocou reação

A dramatização impressionou mais do que qualquer reportagem já feita sobre o caso e mudou o rumo dos acontecimentos.

Em uma cena impactante da série, por exemplo, a franqueada Jo Hamilton vê sua dívida aumentar no computador a cada clique de atualização enquanto fala ao telefone com uma gélida atendente da Horizon dizendo que não há nada errado com o sistema, revoltando o espectador.

Quatro dias após a exibição do programa, mais de 1 milhão de pessoas haviam assinado uma petição exigindo que Paula Vennels devolva a medalha CBE (Commander of the British Empire). Ela já disse que o fará.

Em sua primeira fala do ano no Parlamento, o primeiro-ministro Rishi Sunak anunciou um projeto de lei para perdoar e indenizar os condenados, coisa que o governo sempre se esquivou de fazer.

A comissão de inquérito do Parlamento passou a ser transmitida ao vivo pelas TVs, expondo representantes do Post Office e da Fujitsu.

O discurso é parecido: todos lamentam e reconhecem os erros. E são marcados sob pressão por Bates, que segue protestando na imprensa contra a lentidão.

Dez dias após o início da série, a reputação da marca Post Office medida pelo instituto YouGov caiu de 6,4 para 4,8.

Em um país que adora uma medalha real, muitos querem que Alan Bates seja condecorado. Mas quem também merece condecoração é a ITV e os que tiveram a ideia de abordar o escândalo em um formato diferente, fora do enquadramento do jornalismo tradicional que até hoje não tinha funcionado.

A série bateu mais de 16 milhões de espectadores em duas semanas, superando o lançamento do seriado Downton Abbey.

Em entrevista ao The Guardian, a autora do programa, Gwyneth Hughes, disse: “Se você quer realmente chamar a atenção das pessoas, conte uma história. E nesse caso, uma história verdadeira”.


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