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terça-feira, abril 23, 2024

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Aldir, Aldir, Aldir

Aldir Blanc. Crédito: Fábio Motta/Estadão Conteúdo

Por Bruno Thys

Tive muitos ídolos na vida, nenhum do tamanho do Aldir Blanc. Aldir era grande porque era muitos: o ídolo, o inacreditável letrista, o Garrincha da MPB que nos fazia rir, chorar e chorar de rir com suas crônicas musicadas por João Bosco.

Aldir era a alma do subúrbio, o olhar único sobre a vida na Zona Norte, o Proust de Vila Isabel.

Aldir era o homem que abandonou a medicina pra se dedicar à poesia da vida, fosse lida, cantada, falada, escrita, conversada, versada e improvisada.

Aldir era o parceiro de bebida de todo bêbado, embora não bebesse há muitos anos. Nunca fui a um botequim com ele, mas jamais deixei de brindar os melhores sentimentos de um fã quando chega à segunda casa de um ídolo. Entrar num botequim, na minha cabeça de adolescente, era sair de uma música ou crônica de Aldir para a vida real.

O Aldir, aliás, quando nasceu foi surpreendido por um anjo meio torto português que lhe disse “Bai Vlanc, ser Basco na Bida”. Era um vascaíno intransigente e ranheta. Sabia tudo do time.

Aldir era de uma geração que ganhou o nome de MAU, Movimento Artístico Universitário, uma galera que se reunia em torno da música na rua Jaceguai, na Tijuca, todos os sábados, na casa da família Portocarrero; jovens cheios de sonhos e sambas, muitos deles cantados por gente como Elis já naquela época. Eram “nativos” daquele lugar, entre outros, Gonzaguinha e Ivan Lins.

Quando o conheci pessoalmente, levado à casa dele, na esquina da Muda com a Usina, por João Máximo, para entrevistá-lo para o JB, em meados dos anos 1980, não tive pudor em revelar minha admiração.

– Tinha o sonho de conhecer pessoalmente duas pessoas: você e o Samarone.

– Tu tá me sacaneando…

Essa resposta, lembrada por ele desde então quando nos encontrávamos ou quando um portador levava um abraço meu pra ele e vice-versa, me faz pensar até hoje.

Nunca soube e nem teria a coragem de perguntar se ele se sentiu sacaneado por ser vascaíno, por ser comparado a um jogador de clube, ídolo, mas muito distante da constelação do futebol brasileiro ou sei lá por que outro motivo. Me pego rindo sempre que lembro dessa nossa primeira troca de palavras, cara a cara. Já o havia entrevistado por telefone algumas vezes, mas estar diante da figura do Aldir era um presente da vida.

Quando o conheci já havia lido todos os seus livros de crônicas, cada uma mais engraçada do que a outra, editados pela Codecri, da turma do Pasquim, onde desfilavam personagens reais: o tio Waldir Iapetec, o avô Aguiar, de longe a grande figura da vida de Aldir, o pai Ceceu Rico e outras figuras absolutamente humanas, movidas pela sem-vergonhice em seu sentido mais amplo: não se ter a vergonha de ser o que se é. Sua obra tinha muito da sem-vergonhice da vida, a emoção verdadeira, os sentimentos mais surpreendentes que o homem pode expressar.

Sou grato por ter Aldir como ídolo, inspiração, por ler suas histórias, algumas contadas por ele mesmo, ouvir suas músicas, por ter conhecido sua casa, a mulher, as filhas e vivido alguns momentos com ele que guardo com todo o cuidado no cantinho do afeto.

Vivi com o meu colega e amigo Cláudio Henrique uma noite inacreditável em torno do Aldir. Início dos anos 1990, o samba andava em baixa e os compositores se reuniam na casa do Moacir Luz, no primeiro andar do prédio onde morava o Aldir. Como as gravadoras não queriam saber de samba, eles passavam a noite mostrando uns para os outros o que estavam compondo. Naquela noite, que virou reportagem da revista de Domingo do JB, estavam Betinho, Paulo César Pinheiro, Fátima Guedes, o Magro do MPB-4, Sílvio da Silva Filho, Aldir, Mary, Guinga e uma das filhas, Dudu Falcão e mais gente. O violão passava de mão em mão e isso durou até de manhã. Betinho disse pra mim e para o Claudio: “Essas reuniões aqui são os melhores momentos musicais da minha vida”.

Foi lá, numa dessas reuniões, que nasceu Saudades da Guanabara, escrita a seis mãos por Aldir, Paulo César Pinheiro e Moacir Luz. Eu era editor do Caderno Cidade do JB. Aldir me ligou e contou:

– Nêgo, fiz uma música que é um passeio pela nossa saudade do Rio e um lamento à desesperança desses tempos de degradação e violência. Vou te mandar pra ouvir e acho que pode render uma matéria.

O Rio era uma de nossas paixões em comum. Ouvi a fita cassete e chorei e ainda choro diante do refrão “Brasil, tira as flechas do peito do meu padroeiro, que São Sebastião do Rio de Janeiro ainda pode se salvar”.


Aldir, na caricatura de Lan, estampa a capa da revista Domingo, do JB, ao fazer 50 anos, em setembro de 1996

Na mesma época convidei-o a escrever uma coluna no JB. Ele recebia um desenho do Lan, o grande caricaturista, e fazia o texto. Eram geniais. Aldir e o Lan se adoravam. Aldir brincava: “Sou letrista de caricatura”!

Que pena Aldir ter partido assim. Não merecia sofrer no final, nem nunca. Foi-se um olhar único da vida, personagem de si mesmo. Imagino a dor de tanta gente, tantos eram o Aldir. Ele era ligado demais à família, tinha um amor incontrolável pela mulher, um ciúme de maluco das filhas e um tremendo orgulho da terceira geração, da neta que deve estar fazendo residência médica. Era preocupado com os parentes, com os amigos. Quando soube que eu estava com hepatite lá pelos idos de 1980, ligava toda semana pra saber a quantas estavam minhas transaminases e bilirrubinas. E dizia: fica tranquilo que daqui a um ano a gente vai tomar uma cerveja”.

Aldir amava, sobretudo os livros. Um dia, Moacir Luz me contou de uma viagem que fizeram para a casa de campo de um amigo num feriado. Aldir já estava recluso, quase não saía do quarto. Todos ficaram muito felizes em ele topar passar uns dias fora. E lá foram. Aldir levou três malas e todo mundo estranhou. Chegou na casa do amigo na Serra, entrou no quarto e desfez a curiosidade. Eram malas de livros. Se trancou, ficou lendo e só saiu do quarto na hora de ir embora. Moacir Luz comentou:

– Como lia, aquele filho da puta!

Aldir era o olhar desconcertantemente lúcido da tragédia da vida no sentido grego da palavra. Não saberia hierarquizar os grandes de todos os tempos, mas no meu time ele joga com a 10. Sem sacanagem.

Bruno Thys

Quem estreia neste espaço é Bruno Thys, que foi editor no Jornal do Brasil, um dos fundadores e diretor de Redação do jornal Extra, editor executivo da Infoglobo e diretor-geral do Sistema Globo de Rádio. Dirige hoje sua editora Máquina de Livros.


Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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