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sexta-feira, março 29, 2024

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Acusados de abuso sexual têm direito ao anonimato antes de serem denunciados?

Especial Reino Unido

Luciana Gurgel

Por Luciana Gurgel (https://twitter.com/lcnqgur?lang=pt), especial para o J&Cia

Mais uma bola dividida na disputa entre privacidade e interesse público, com repercussão direta sobre procedimentos jurídicos e liberdade de imprensa. Na última segunda-feira (1º/7), o cantor Cliff Richard (que é Sir, Cavaleiro da Ordem Britânica) e o apresentador de rádio Paul Gambaccini anunciaram aqui em Londres apoio a uma petição pública solicitando que volte a ser garantido o anonimato de pessoas acusadas de abuso sexual até serem formalmente denunciadas pela autoridade responsável pela investigação.

Protocolada pelo grupo de pressão FAIR (Falsely Accused Individuals for Reform), a petição busca modificar a legislação britânica que rege o tema. Vítimas e denunciados em casos de estupro ganharam em 1976 o direito ao anonimato. Mas 12 anos depois a lei foi modificada, mantendo-se a privacidade apenas para as vítimas. Esse procedimento permanece em vigor até hoje, valendo para qualquer ofensa sexual.

As duas celebridades que lideram a mobilização protagonizaram casos rumorosos. Uma batida policial na casa de Cliff em um condomínio de luxo por causa de uma acusação de assédio, em 2014, ganhou cobertura com ares de espetáculo pela BBC, com direito até a helicóptero sobrevoando a propriedade. O cantor, que nunca chegou a ser preso nem condenado após dois anos de investigações, processou a emissora e ganhou uma indenização.

Já Gambaccini, então na BBC, foi acusado de agredir sexualmente dois jovens. Chegou a ser preso, em 2013, em uma etapa da operação Yewtree, realizada após o escândalo de pedofilia envolvendo o também apresentador da emissora Jimmy Savile. Passou um ano sob fiança, até que o caso foi arquivado.

Invocando o estrago provocado pela exposição pública antes da condenação (que em ambos os casos acabou não ocorrendo), eles se uniram à FAIR, fundada por Daniel Janner, filho do político Grenville Janner, igualmente denunciado por abuso. Lord Janner morreu em 2015, mas o caso continua rendendo. Em maio, foi iniciada uma revisão pelo órgão independente que investiga a conduta da polícia para avaliar possíveis falhas no processo.

O lançamento da petição recebeu muita atenção da Imprensa e de pessoas mobilizadas pela causa.  Logo no primeiro dia, ultrapassou 11 mil assinaturas. Pelo sistema de petições do Parlamento, a partir de dez mil o Governo é obrigado a dar uma resposta. E com 100 mil o tema é debatido no plenário da casa.

Em entrevista à BBC, Gambaccini disse que atualmente os acusadores têm direito à privacidade ao longo de toda a vida, enquanto os acusados não têm segundos de anonimato, o que a seu ver encoraja mentirosos e lunáticos a fazerem acusações falsas. Ele defende que se deve dar tempo para que as autoridades possam distinguir qual dos crimes está presente: o de abuso sexual ou o de falsas alegações.

Classificando de “estúpido” o ditado “onde há fumaça há fogo”, Cliff corroborou a tese: “As pessoas podem ser más o suficiente para mentir sobre uma pessoa inocente”.

Como era de se esperar, a iniciativa provocou reação de entidades que defendem vítimas de violência. Em uma carta aberta, a End Violence Against Women Coalition dirigiu-se a Cliff Richards e demais engajados na ação pedindo que reconsiderassem a campanha, que classificam de “grosseiramente mal direcionada”. As entidades sustentam que o anonimato durante as investigações impediria que outras vítimas do mesmo abusador se expressassem.

A FAIR rebateu observando que o projeto de lei proposto contempla a possibilidade de que imprensa, polícia ou Ministério Público solicitem a um juiz que o anonimato seja quebrado em circunstâncias excepcionais, cabendo à Justiça decidir se a quebra é necessária por questões de segurança pública ou para que outras vítimas se apresentem.

Sem dúvida, os defensores da mudança da legislação têm argumentos fortes. Por outro lado, é inegável que a legislação atual permitiu grandes avanços à repressão e punição dos abusos sexuais. Da mesma forma que existem pessoas más capazes de destruir com falsas acusações as reputações de vítimas hoje sem direito ao anonimato, também existem aquelas capazes de inflingir abusos sexuais que destroem vidas e que passariam a ser beneficiadas pelo anonimato. Vai ser um desafio encontrar o equilíbrio em um tema tão delicado.

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