Nos anos 1970, quando as redações não tinham o atual aspecto de seções de telemarketing ou a assepsia de sala de espera de plano de saúde, esgueirava-se entre mesas e cadeiras uma série de inofensivas “sacanagens”, usualmente lançadas como cascas de banana na caminhada inicial dos focas ou de veteranos distraídos.

O caótico e esfumaçado ambiente de algumas redações produzia estórias saborosas, muitas delas já reproduzidas neste espaço. Na opinião do colega Luciano Martins, o que retirou das redações a prerrogativa de produzir histórias saborosas foram os “famosos” projetos jornalísticos, disseminados a partir dos anos 1980, com tiro inicial disparado pela Folha de S.Paulo. Concordo, mas acho que o espírito de camaradagem entre profissionais, que foi substituído pela guerra de poder salpicada com a fogueira das vaidades, também pesou muito nessa equação.

Pois bem. A “pauta que valia o emprego” era uma daquelas hilárias pegadinhas usadas para apavorar os focas ou os novatos no emprego. Normalmente tratavam de assuntos espinhosos, inexistentes ou fictícios, envolvendo personagens também quiméricos ou extremamente ácidos aos jornalistas. Seu cumprimento era tido como praticamente impossível, dai valer o emprego, porque vinha sempre acompanhada do lembrete de que era uma solicitação da direção da empresa ou mesmo do dono.

Até já havia sido alertado sobre o “presente de grego” quando um dos chefes de Reportagem da Agência Folhas incumbiu-me de ir ao Instituto Butantã, instalado no campus da Universidade de São Paulo (USP), para saber do diretor Isaias Raw em que estágio estava uma determinada vacina esquecida havia meses pela imprensa.

Garotão, ainda na faixa dos vinte e tantos anos − acreditando, portanto, que o mundo me devia todas as satisfações que um jornalista exige −, cheguei ao Butantã no início de uma tarde e disse à secretária que precisava entrevistar o diretor.

− O Dr Raw não fala com jornalistas –, disse ela com ar sério, mas que aos meus olhos ainda não treinados pareceram lampejar uma nesga de ironia.

Isaías Raw (Crédito: Rodrigo Capote/Folhapress)

Como não falava com jornalistas? Ele era um empregado da sociedade, com salário regiamente pago por todos nós, portanto não poderia se recusar a me receber, um jornalista, inclusive diplomado e trabalhando para um grande jornal. Que história era aquela de dar plenos poderes a uma secretária para barrar repórteres? Se ele se recusava a “dar satisfações à sociedade” deveria dizer isso pessoalmente, olhando nos meus olhos e apresentando mais argumentos para ver se eu aceitava.

O bate-boca subiu de tom ao ponto de o próprio diretor abrir a porta de sua sala para verificar o que estava ocorrendo. Inteirado de minha pretensão resolveu me encaminhar à sua sala para explicar o porquê não falava com jornalistas. Havia quase um ano o pesquisador barrava os repórteres em função de um deles ter distorcido totalmente informações sobre uma pesquisa. O fato lhe rendera muitos dissabores e chicana de seus pares. Magoado, enviou à direção dos grandes veículos de imprensa um comunicado informando sua decisão.

De qualquer forma, disse ter ficado impressionado com a veemência da minha argumentação em defesa do cumprimento da pauta e decidiu-se por abrir uma exceção e me conceder a entrevista, desde que me comprometesse a só escrever se não tivesse a mínima dúvida sobre as informações e explicações repassadas.

Quando voltei à redação já estava ciente de que a pauta era sacana, certeza que se concretizou ao atravessar o silêncio sepulcral que desceu sobre a redação quando solenemente entrei no recinto e me dirigi à minha máquina para escrever o texto.

Mal colocara a primeira lauda na máquina quando o chefe de Reportagem perguntou o que estava fazendo. Disse que daria detalhes depois de terminar o texto, pois sabia que estávamos entrando no período de fechamento e havia muita informação para organizar.

Ele insistiu sobre a veracidade da entrevista e com cara de sonso lhe disse que o diretor havia me recebido muito bem, fora muito solícito e bastante didático.


A história desta semana é novamente uma colaboração de Ubirajara Júnior, que teve passagens por Folha de S.Paulo, Diário Popular, TV Globo, TV Gazeta, SBT, Rádio Gazeta, Autolatina, Radiobras (Brasília), Secretaria Estadual de Esporte e Turismo (S. Paulo), Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Jornal da Ciência (SBPC) e Agência Espacial Brasileira (AEB). Diz que depois de 41 anos de atividade resolveu cuidar só da própria vida e se aposentou.

Nosso estoque do Memórias da Redação continua baixo. Se você tem alguma história de redação interessante para contar mande para [email protected].

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