Por Victor Félix

Na antiga TV Tupi, ia ao ar nas noites de terça-feira o programa de entrevistas Pinga Fogo, que recebia personalidades, principalmente ligadas à política, para debater assuntos em alta na época. Em meio à ditadura militar, era um programa “atrevido”, que abordava questões sensíveis.

Na noite de 28 de julho de 1971, o programa, transmitido para todo o Brasil, recebeu o médium Chico Xavier (2/4/1910-30/6/2002), que falou sobre temas como espiritismo, mediunidade, caridade, sexo, pena de morte, aborto, chegada do homem à Lua, entre outros. Fez tanto sucesso que foi feita uma “segunda parte”, em 21 de dezembro do mesmo ano. Pinga Fogo com Chico Xavier bateu recorde de audiências, com cerca de 75% dos televisores brasileiros ligados no programa.

Com mediação de Almir Guimarães, a bancada de entrevistadores foi composta por profissionais como Saulo Gomes, Reali Jr. e Helle Alves, além de pessoas ligadas ao espiritismo, como Vicente Leporace e Herculano Pires, entre outros. Jornalistas&Cia conversou com Durval Monteiro, jornalista aposentado que foi editor-chefe dos Diários Associados e que fez parte da bancada de entrevistadores de Chico no segundo programa, em dezembro de 1971.

Durval Monteiro

Durval falou sobre a importância do Pinga Fogo para a história do jornalismo brasileiro. Ele destacou que, com a ditadura, o programa ficou fora do ar até cerca de 1970. Então, a Tupi arriscou-se a colocá-lo novamente no ar, “driblando cuidadosamente a censura”. O Pinga Fogo foi criado em 1955 e encerrado em 1980, com a crise financeira que levou ao fechamento da Tupi. Durval também fez comparativos entre o Pinga Fogo e o atual Roda Viva.

Em relação à entrevista com Chico Xavier, contou que o auditório estava muito lotado, com pessoas dos mais diversos tipos; não só o auditório, como também as calçadas das ruas próximas à Tupi. Quando ouviu Chico falar, percebeu que estava participando de um evento especial, com uma figura acima da média, que não poderia “ser descrito, mostrado através de lentes comuns”.

Confira a entrevista na íntegra:

Jornalistas&Cia − Na sua opinião, qual a importância do Pinga Fogo para o jornalismo brasileiro?

Durval Monteiro − Sinceramente, é um marco na história do jornalismo brasileiro. Antes dessa equipe, da qual eu participei como entrevistador, e da ditadura, o programa já existia e entrevistava livremente as maiores figuras da época, era um programa importantíssimo.

Com a ditadura, foi proibido e ficou fora do ar até 1970. Foi aí que a Tupi, mesmo com a censura, arriscou-se a colocar o programa de volta ao ar. Em 1971, teve grande importância por ter sido feito no período mais sombrio da ditadura, tomávamos muito cuidado com a censura. Ele tinha, na medida do possível, liberdade de tocar em assuntos delicados de forma cuidadosa.

Hoje em dia, é difícil imaginar um programa como o Pinga Fogo no ar, porque a própria televisão mudou. O programa ia ao ar geralmente às 23h e encerrava a programação da Tupi, pois não tinha hora para acabar, dependia exclusivamente do entrevistado. Às vezes invadia a madrugada. No caso do Chico, somando os dois programas, foram mais de quatro horas. Atualmente, um programa que dura quatro, cinco horas é inviável; bateu 45 minutos o apresentador corta o entrevistado e encerra.

Apesar disso, considero o Roda Viva hoje o programa jornalístico mais importante da televisão, a maneira como é feito remete muito à ideia do Pinga Fogo, com essa presença de jornalistas, de diferentes visões e tendências. Mesmo com limitação de tempo, é muito bom, pois traz assuntos variados, não necessariamente apenas política, entrevista personalidades de várias áreas. E nesse ponto difere do Pinga Fogo, pois todos os episódios eram sobre política. O único que não foi, na história do Pinga Fogo, foi o do Chico.

J&Cia − E como foi a entrevista com o Chico? Você lembra de algum detalhe marcante do evento?

Durval − Eu, particularmente, tinha a curiosidade investigativa do repórter. Não tinha nenhum vínculo com a religião espírita. Participei como repórter, queria constatar até onde tudo que se dizia sobre Chico Xavier era verdadeiro, se existiam falhas etc.

E foi com esse espírito que saí da 7 de Abril, da redação dos Diários, para o auditório da Tupi, que tinha, imagino, 400 lugares. Normalmente ficava cheio quando o programa recebia personalidades populares. Fui de carro, e o meu impacto começou no trajeto.

Normalmente, imagine, às 10/11 horas da noite, último programa da emissora, as ruas estavam vazias, na Tupi só estavam os técnicos que iam cuidar da apresentação do programa. Só que nessa ocasião, quando comecei a subir a Consolação, e segui rumo ao Sumaré, vi um número gigantesco de pessoas nas calçadas, e até chegar à TV Tupi, a imagem era essa, um monte de gente nas ruas, a Tupi tinha colocado aparelhos em vários pontos, então deduzi que as pessoas estavam ali pois o auditório já estava lotado.

E, de fato, tinha muita, muita gente nas ruas, calçadas cheias, chuto que pelo menos um quilômetro de calçada cheio de gente. Aí, quando cheguei, o auditório estava superlotado. Se, de fato, tinha 400 lugares, devia ter em torno de 500 ou 600 pessoas lá.  Gente sentada no chão. E, surpreendentemente, estava um silêncio respeitoso, tanto no auditório como durante todo o programa.

J&Cia − O que você sentiu ao estar na presença de Chico Xavier e poder entrevistá-lo?

Durval − Aos poucos, foi caindo a ficha. Começamos o programa, Almir fez as apresentações. Percebi que estava participando de um evento especial, me dei conta que tive o privilégio de entrevistar alguém especial, que não pode ser descrito, mostrado através de lentes comuns, era uma figura acima da média.

Fui entendendo que o conteúdo que ele trouxe estava cima de conversas e discussões banais, de fato era uma figura acima, espiritualmente especial. E isso contaminou a todos os presentes. A coisa toda foi tão empolgante, a reação da audiência madrugada adentro, o número de telefonemas que a emissora estava recebendo não só de São Paulo, mas do Brasil inteiro, pois o programa estava sendo transmitido via Embratel para todo o País. Foi uma coisa fantástica, tocante.

E, a partir daí, eu, que era alguém meio cético em relação a religião… não que tenha me tornado espírita praticante, mas confesso que passei a ver o espiritismo com os olhos de simpatia e entendimento de que há coisas que a nossa vã filosofia não consegue explicar.

Eu me lembro de, ao longo do programa, olhar para a plateia. Havia muitas figuras que na época eram famosos, atores, atrizes, pessoas conhecidas, também pessoas que tinham perdido filhos, e foram lá na esperança de ouvir as palavras do Chico e ele psicografar. No final do programa, ele psicografou um poema. De certa forma, você via uma plateia emocionada, cheia de espiritas praticantes ou novos espiritas que procuraram a religião para encontrar conforto e consolo.

Dava para ver nos olhos dessas pessoas, inclusive de alguns que eu conhecia, o sofrimento da perda, mas também o conforto das palavras do Chico, algo como “tudo bem, é só uma passagem”, “tem coisas melhores depois”, e isso servia de conforto. Era uma audiência emocionada, respeitosamente silenciosa, e que não arredou o pé. Quando terminou o programa e fomos embora, aquele um quilômetro de calçada permanecia lotado. Foi um espetáculo de muita comoção e muita emoção.

Pinga Fogo II – dezembro de 1971

J&Cia − Em 1971, você fez uma pergunta para Chico sobre a era dos computadores, sobre a cibernética dominar o mundo, e se a máquina vai conseguir estrangular o homem. Ele respondeu, de forma resumida, que precisamos estudar nossos lazeres, que nossa mente não está tão preparada para o descanso que a máquina nos trouxe, e que é preciso ser prospectivo. Como você interpretaria essa resposta nos dias atuais?

Durval − Ao fazer a pergunta, na época, eu não poderia imaginar o quanto avançaríamos nos dias de hoje. Há mais de 50 anos, a visão do progresso tecnológico era muito diferente. A resposta do Chico à época, nas entrelinhas, previa uma “escravidão tecnológica” que vivemos hoje, como somos escravizados pela tecnologia nos dias atuais, e eu interpreto que, de certa forma, a resposta dele também falou sobre como essa tecnologia nos trouxe comodidade e que poderíamos ser menos dependentes dela.

Todo dia me questiono se preciso de fato olhar as redes sociais com a frequência desenfreada que as pessoas olham na atualidade. Acho que as pessoas podem ser mais cuidadosas com isso. A mensagem do Chico, além da capacidade de prever essa “escravidão” tecnológica, entendo como um pouco esperançosa também e, creio eu, as pessoas que se importam com o assunto também alimentam e refletem sobre essa esperança.

J&Cia − Se Chico Xavier estivesse vivo hoje, 2022, qual pergunta você faria para ele?

Durval − Acho que a mensagem que o Chico nos passou há mais de 50 anos seria ainda mais importante hoje. Eu perguntaria se essa escravidão tecnológica excedeu a previsão dele e o que ele diria a respeito dela hoje. Quando ligamos a televisão e vemos tanques russos invadindo a Ucrânia, como ele veria isso.

Lá atrás, ele fez uma previsão que acabou não só se concretizando, mas se concretizando de uma forma muito mais ampla do que a gente imaginava a partir da fala dele. Perguntaria também se ele acha que o mundo tem cura, como ele vê tudo o que está acontecendo recentemente, e se ele ainda tem esperança de que o nosso mundo pode se curar.

Sobre Durval Monteiro

Jornalista há 58 anos, começou nos Diários Associados, no Departamento de Documentação. Foi para reportagem, onde foi editorialista, editor de Política, secretário de Redação do Diário da Noite, secretário de redação do Diário de S. Paulo, e editor-chefe dos dois jornais, nos anos 1960/70.

Nessa época, em que era editor-chefe dos Diários Associados, participava da equipe de entrevistadores do Pinga Fogo, ao lado de nomes como Reali Júnior, José Fernando de Barros Martins, Saulo Gomes, Luiz Ferreira Lima. Ficou na redação dos Diários Associados de 1964 até 1976. Então, foi para Rede Tupi de Televisão, onde ocupou o cargo de diretor Nacional de Jornalismo. Ficou até 1979, às vésperas da falência da emissora. Então recebeu um convite para criar uma área de comunicação corporativa na Gessy Lever, hoje Unilever do Brasil, na área de departamentos corporativos, onde ficou até 1996.

Foi também novelista de televisão, fez três novelas na Record, depois ingressou em um projeto na Globo, fez novela com atores hispânicos transmitida para o mercado dos Estados Unidos, um remake da novela Vale Tudo, de Gilberto Braga. Assinava seus projetos com o pseudônimo Yvis Dumon, que criou na época da Unilever. Fez também outros projetos no SBT. Perto de 2010/11, aposentou-se e, atualmente, trabalha com roteiros de minisséries.

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