Alter do Chão, Pará.

Uma jovem repórter em ascensão, repleta de sonhos e ideais, desembarca “de mala e cuia” no coração da Amazônia. Seu objetivo: investigar e denunciar os mandos e desmandos que ameaçam a maior floresta tropical do mundo.

Mas sua aventura rapidamente é interrompida por uma ligação inesperada e um tanto quanto misteriosa. Do outro lado da linha, uma jornalista britânica mede suas palavras (que podem estar sendo monitoradas) e a convoca para partir imediatamente para o interior das Inglaterra e participar de um projeto que não só medirá forças com a maior potência do planeta como também mudará a história do jornalismo mundial.

Aventura, espionagem, romance, intrigas, prisões.

 

Roteiro de um filme? Não, mas bem que poderia ser.

Essa história, real, é o pano de fundo de O Vazamento, novo livro de memórias de Natalia Viana, fundadora e diretora da Agência Pública. Nele, ela narra sua participação no Cablegate, vazamento de telegramas diplomáticos dos Estados Unidos divulgado pelo WikiLeaks, de Julian Assange, que chacoalhou o mundo em 2010 e 2011.

Os dias de apreensão e expectativa em Ellingham Hall, QG do WikiLeaks no Reino Unido, o difícil trabalho de cooperação com algumas da principais publicações do mundo, a luta para ser ouvida em um ambiente tradicionalmente machista, a pressão estadunidense pela prisão de seus integrantes e até os impactos pessoais na vida da autora são retratadas em O Vazamento.

Em entrevista para a coluna J&Cia Livros e para este Portal dos Jornalistas, Natalia Viana fala, entre outros assuntos, sobre os desafios para a produção do livro, seus conflitos internos, a experiência de participar do Cablegate e o impacto que o WikiLeaks trouxe ao jornalismo e à democracia mundial. Confira:

Portal dos Jornalistas/J&Cia Livros – O Vazamento é um livro reportagem, de memórias ou um thriller?

Natália Viana – Confesso que, quando estava escrevendo, nem eu sabia direito. Eloah Pina, da Fósforo, editora que me acompanhou durante a produção do livro, classificou-o como um “thriller jornalístico”. A verdade é que foram mais de dez anos trabalhando nessa história e quando comecei, lá em 2013, escrevendo os primeiros capítulos, segui aquele padrão mais clássico do jornalismo, escrevendo em terceira pessoa. Mas depois acabei deixando de lado porque achei muito frio e pouco sincero. Como me envolvi muito com a história, se me afastasse dela não seria tão verdadeiro.

Mas eu tinha alguns dilemas na minha cabeça, principalmente porque jornalista não gosta de se expor, principalmente as suas relações pessoais, suas dúvidas e medos. E eu teria que abordar isso, até porque não tem como contar essa história sem falar do romance que tive com o Kris [N. da R.: Kristinn Hrafnsson, jornalista islandês que integrou a equipe do Cablegate] e o quanto isso impactou na minha maneira de enxergar e fazer jornalismo.

Meus hábitos mudaram, não consigo mais ficar em escritório. Virei uma pessoa muito mais internacional, que cobre temas que eu jamais imaginaria, como tecnologia, fora tudo o que impactou na criação da Agência Pública.

Então, para chegar a um formato ideal para o livro, procurei manter a respeitabilidade e a seriedade do jornalismo, até porque precisei fazer muita pesquisa e reportagem para produzi-lo, mas também ser mais sincera em relação à pessoa Natalia. No final, ele acabou sendo quase que uma autobiografia parcial do ano mais importante para a minha carreira. Um livro bom de ler, não só pra jornalista, mas que extravasa, que é dinâmico e prazeroso, quase como se fosse um filme.

PJ/J&Cia LivrosVocê se inspirou em algum outro livro para chegar a esse formato?

Natália Viana – Sim. Já em Dano Colateral [N. da R.: livro dela lançado em 2021 pela Objetiva] eu tinha sido muito influenciada por A Republica das Milícias, de Bruno Paes Manso. Acho que é uma obra de muito impacto, porque ele se colocou dentro da narrativa, detalhando as suas apurações. Ao ler aquilo percebi que a gente vive uma era de heróis vazios, de influenciadores famosos, mas que não têm nada a dizer. Nunca pensei que o jornalista tinha que virar influenciador, mas acho que ele também precisa sair do pedestal de quem tem todo conhecimento e se abrir para se aproximar do público. Foi então que cheguei a esse modelo. Acho que a gente tem uma missão, de defender o jornalismo, senão ele vai acabar. A gente tem que convencer a sociedade de que o jornalismo é importante, de que vale a pena, e que os jornalistas sérios são pessoas de valor. Eu gostaria que outros jornalistas também fizessem isso.

PJ/J&Cia LivrosVocê começa seu relato lembrando que estava em Alter do Chão (PA), onde pretendia dar um novo rumo para a sua carreira com foco na Floresta Amazônica, quando chegou o convite para integrar o time do WikiLeaks. Você já se perguntou como teria sido sua carreira se aquele convite inesperado não tivesse surgido?

Natalia – Naquela época eu queria ser como a Eliane Brum (risos). Eu provavelmente seria uma pessoa muito mais envolvida com o tema da floresta, mas acabei indo por outro caminho, que é o impacto da disrupção que a tecnologia traz para a democracia. Não era algo que eu esperava, mas que foi muito bom.

Natalia Viana durante sua curta moradia no Pará

PJ/J&Cia LivrosEm algum momento você cogitou não aceitá-lo?

Natalia – Por uns três segundos. Quando me ligaram fazendo o convite, mas não me informaram o que seria de fato, apenas que seria um projeto enorme, fiquei com uma cara meio estupefata, me questionando se deveria aceitar. Mas ao meu lado estava a também jornalista Natália Garcia, que na mesma hora me disse que esse tipo de convite a gente não recusa. Desde então nunca mais pensei duas vezes.

PJ/J&Cia LivrosFazer jornalismo investigativo na Amazônia ou “peitar” o imperialismo americano. O que é mais perigoso?

Natalia – Os dois, infelizmente. Desde o período do WikiLeaks até hoje, o trabalho de jornalista ficou muito mais perigoso. Infelizmente, o jornalismo como um todo perdeu respeitabilidade social, poder político e financeiro, e com isso também perdeu influência em termos de participação na vida do público em geral. Atacar jornalista tornou-se uma arma política muito popular. Todos os líderes da extrema direita e alguns da extrema esquerda que são populistas atacam o jornalismo corriqueiramente e isso acaba se normalizando também na sociedade. Quantos repórteres não são atacados nas ruas quando estão fazendo alguma reportagem? Ficou muito mais perigoso e violento. Jornalistas sempre foram alvos, mas piorou muito. Não importa se estamos na rua, no meio da Amazônia ou questionando grandes poderes, hoje é muito mais difícil ser jornalista.

PJ/J&Cia LivrosQuase 15 anos depois, qual a análise que você faz sobre o impacto do WikiLeaks no jornalismo global?

Natalia – Foi muito grande em vários sentidos. O Cablegate assustou não só o governo dos Estados Unidos, mas o mundo inteiro, pois mostrou que a digitalização permitia não só o vazamento de informações em larga escala, mas uma verdadeira disrupção nas instituições tradicionais. Também inspirou muitos jovens a saírem às ruas e influenciarem a sociedade de maneira mais direta, como aconteceu nas revoluções do início de 2010.

No jornalismo ampliou a facilidade de incentivar o vazamento de dados. Se antes precisaríamos de uma pilha imensa de documentos, ocupando salas e mais salas, hoje tudo pode estar ao alcance de um clique. Foi o que aconteceu no Brasil, por exemplo, com a Vaza Jato, que mudou o rumo da política.

Além disso, o modelo de trabalho do Wikileaks trouxe diversos exemplos positivos ao inaugurar uma época de parceria entre redações, seja para trabalhar em cima do vazamento de informações ou como aconteceu aqui no Brasil na época da Covid, em que o governo deixou de ser uma fonte confiável de informações e vários veículos se uniram para coletar dados e publicar informações sobre a pandemia. Também trouxe um impacto interessante, especialmente em organizações pequenas, que foi a adoção do modelo de uma redação menos hierarquizada e mais colaborativa.

Enfim, foram muitas influências. Assange, mesmo não sendo jornalista, trouxe muitas novidades, encontrou caminhos e soluções interessantes para o jornalismo digital. Obviamente ele não é uma pessoa sem defeitos, mas foi um grande influenciador da atividade no Século 21.

PJ/J&Cia LivrosVocê comenta em muitos momentos que Assange é uma pessoa muito centralizadora. Como isso impactou positiva e negativamente o Cablegate?

Natalia – Assange é uma pessoa genial, com ideias disruptivas e capaz de fazer uma intersecção entre tecnologia, comunicação e política como poucos. Foi uma pena ele ter ficado preso justamente durante as discussões em relação à regulamentação das big techs, porque ele teria sido uma voz muito importante nesse debate. Ele consegue trazer ideias e conceitos muito relevantes.

Por outro lado, é uma pessoa caótica, muito concentradora, micromanager, que compartimentaliza e é muito controladora, sem uma visão estratégica institucional, um pouco de propósito. Ele deixava claro que o WikiLeaks era uma instituição de vanguarda, que não queria ter um modelo de gestão clássica. Ele achava que isso poderia impactar no resultado, mas o que vemos é que hoje o WikiLeaks tem pouca influência, sendo que na época ele poderia ter criado uma redação global, indo por outros caminhos. Acho que foi uma oportunidade perdida.

Natalia Viana e Julian Assange no “QG” do WikiLeaks

PJ/J&Cia LivrosVocê voltaria a trabalhar com ele?

Natalia – Voltaria. Não para ele, mas com ele, sim. Até pensei em visitá-lo depois que saiu da cadeia. Não sei como ele está, pois não falei com ele. No pronunciamento da ONU, ele disse que estava precisando se recuperar. Não sei como ele está e nem quais são seus planos, mas eu trabalharia com ele novamente, mas desta vez como parceiro, pois barbudo nenhum vai mandar na gente (risos).

PJ/J&Cia LivrosO machismo institucionalizado é mostrado em diversos momentos de O Vazamento, desde a falta de crédito pelo seu trabalho até a ausência de convites para eventos realizados aqui no Brasil e que privilegiaram seus pares internacionais do sexo masculino para falarem do caso, como ocorreu em um dos Congressos da Abraji. Se fosse um jornalista homem brasileiro a integrar a equipe do WikiLeaks, você acha que a repercussão e o relacionamento com a imprensa brasileira teria sido diferente?

Natalia – Acho que sim. E acho que se fosse de um veículo maior também seria. Imagina se quem tivesse trazido fosse o próprio Fernando Rodrigues, que foi o nosso parceiro aqui no Brasil pela Folha de S.Paulo, é obvio que ele estaria em todos os programas de tevê, iria abrir o Congresso da Abraji, escreveria um livro. A recepção da minha figura foi de desconfiança, depois de dúvida em relação ao meu trabalho e só depois veio o convencimento. Mas foi um caminho difícil, primeiro porque no começo eu estava sozinha. Depois veio a Marina, minha sócia na Pública, que trabalhou muito junto comigo.

Mas uma coisa que considero ter sido muito boa foi o trabalho com as editoras da Fósforo, que publicou meu livro. Com elas entendi que a angustia que sentia durante toda a operação do Cablegate era culpa do machismo institucional. Isso explica o motivo de, por ser mulher, você tem que muitas outras barreiras, mesmo estando com o maior furo da história nas suas mãos. Elas me ajudaram a entender isso.

Foi muito bom ter tido o apoio da editora para entender o que na verdade era estrutural e para entender quer tudo o que fazemos na Agencia Pública é para quebrar esse machismo estrutural, que já melhorou muito, mas não acabou. Um exemplo claro disso é o podcast que acabamos de lançar sobre o caso do Samuel Klein. Esta é uma história que acompanhamos há bastante tempo e logo que descobrimos, procuramos redações grandes para republicá-la, porém não tivemos nenhum espaço. A história até hoje não passou na televisão, sendo que ele usou a estrutura das Casas Bahia pra estuprar meninas por muitos anos. Eu entendo que quando um diretor de Redação vê uma história que é polêmica, ele busca um equilíbrio, mas quando é uma mulher que houve essa história, ela sabe que é algo que precisa ser divulgado. Isso deixa claro que até hoje o machismo estrutural tem influência no jornalismo. A gente não quer diversidade só por querer, mas porque há muitas histórias por aí que importam e que não estão sendo contadas.

PJ/J&Cia LivrosVocê dedica três capítulos para falar sobre suas viagens pelo Caribe para levar os documentos do WikiLeaks para publicações locais em países como República Dominicana. Haiti e Jamaica. Tudo isso foi documentado em vídeo por Eliza Capai, um material que resultaria em um documentário que nunca saiu do papel. O que aconteceu?

Natalia – Era uma proposta do WikiLeaks que acabou sendo abandonada. Foi uma das minhas grandes tristezas, porque foi uma história que poderia ter ajudado muitas pessoas, mas que não teve um desfecho. Esses documentos trouxeram grandes esperanças, pois revelavam relações de poder que nunca tinham vindo a público, mas infelizmente o projeto não foi pra frente.

PJ/J&Cia LivrosHoje, em um novo momento de sua carreira, bem mais estabelecida e à frente de um dos principais veículos independentes do Brasil, você toparia passar por tudo isso novamente? Em que moldes?

Natalia – Toparia sem a menor dúvida, exatamente do jeito que aconteceu. Uma experiência como essas é muito importante. Apesar do Assange ter uma personalidade difícil, desorganizada em alguns aspectos, e dos erros de segurança, o nosso compromisso com o jornalismo era inquebrantável. Era um grupo muito comprometido e isso supera qualquer coisa. Se fosse eu a comandar, seria mais organizado. Te prometo. (risos)


Sobre Natalia Viana – Co-fundadora e diretora executiva da Agência Pública, Natalia Viana é autora e co-autora de outros cinco livros-reportagem, entre eles Dano Colateral (Objetiva), sobre civis mortos pelo Exército. Uma das mais premiadas jornalistas do Brasil, acumula ao longo de sua carreira importantes reconhecimentos, entre eles os prêmios Gabo, Direitos Humanos de Jornalismo, Vladimir Herzog, Comunique-se, Troféu Mulher Imprensa e Ortega y Gasset. Bolsista da Fundação Nieman, em Harvard, é membro do Conselho assessor do Centro para a Integridade de Mídia da OEA.

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