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quinta-feira, abril 25, 2024

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O último guerreiro de Samuel Wainer

Por José Maria dos Santos

Jorge de Miranda Jordão

A partida de Jorge de Miranda Jordão (Salvador, 1932 – Rio de Janeiro, 2020), na semana passada, aos 87 anos, encerrou aquele que talvez tenha sido o mais ruidoso fenômeno da imprensa brasileira pois, salvo raríssimo engano, ele era o último soldado de Samuel Wainer. (Entrou na Última Hora carioca em 1954, com 22 anos, e a partir dessa data foi para onde Samuel mandasse. Dirigiu, por exemplo, a Última Hora gaúcha e a paulista). A rigor, as mais novas gerações do nosso jornalismo deveriam debruçar-se sobre a história do jornal Última Hora (1951-1991), criado por Samuel, para compreender suas inovações revolucionárias, tanto na prática da reportagem como na renovação gráfica, que, aliás, justificam a evocação sugerida.

Tive a honra e o privilégio de trabalhar com Miranda na Folha da Tarde em 1968/69. No meu entendimento, foi a sua tentativa de substituir politicamente a Última Hora sob a mesma receita ideológica de Wainer, pois, àquela altura, o jornal original arrastava-se debilmente, estrangulado pelos rumos do País pós-1964. Porém, em vez de buscar as camadas populares, dirigiu-se à classe estudantil. Fazia sentido, uma vez que não havia espaço para hastear a bandeira sindicalista; por outro lado, o movimento estudantil começava a se reorganizar a partir do primeiro congresso (clandestino) da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado na cidade de Valinhos (SP), em 1967. E era a força à esquerda com a qual se podia contar.

A redação da Folha de Tarde adquiriu ares de uma assembleia estudantil permanente. Basta lembrar que, nas coberturas de passeatas, que começaram a pipocar em 1967 e tornaram-se contundentes em 1968, o jornal designava quatro repórteres, fora aqueles que, em eventual disponibilidade, iam por conta própria. Também é conveniente anotar que ali na redação os roteiros sigilosos das manifestações proibidas eram conhecidos com boa antecedência.

Essa espécie de Terra do Nunca era liderada por Miranda, tendo abaixo de si o secretário João Ribeiro, que equivalia ao atual posto de editor-chefe, e Vicente Wissembach, Arlindo Mungioli e Frei Betto como chefes de Reportagem. (À noite, e até o avanço da manhã seguinte, essa função cabia ao Rousseau – foge-me seu verdadeiro nome, que nunca soube –, doce figura que, nas horas vagas, era um declamador amador disputado por festas familiares e saraus eruditos, segundo constava).

Certamente Miranda Jordão merecerá uma biografia competente, à altura da sua trajetória. Por isso, limito-me aqui a lembrar de duas ou três coisas que sei dele (*) – Deux ou trois choses que Je Sais D’elle, filme nouvelle vague de Jean-Luc Godard, 1967 – relativas à estranha presença de um jornal como Folha da Tarde, agressivamente  oposicionista ao regime militar, na Empresa Folha da Manhã. (Realisticamente, em questão de meses, o vespertino passaria para a extrema-direita, após a decretação do Ato Institucional Nº 5, em 13 de dezembro de 1968).

Em uma reunião da redação, expus meu estranhamento à postura da empresa; Miranda Jordão explicou. “Quando Octavio Frias de Oliveira me chamou para fazer o jornal, eu lhe perguntei qual seria a linha. Ele me disse: ‘eu não quero fazer sacanagem com ninguém’. Entendi da minha forma e toquei em frente”. Contudo, numa entrevista que faz parte do livro Memórias da Imprensa Escrita (Editora Saraiva, de Aziz Ahmed) e que pode ser vista no YouTube, Miranda Jordão acrescentou uma ligeira variação: Frias anunciou que seria um jornal à esquerda, mas nos limites da prudência, face à situação em que o País vivia. Mas tudo indicou que Miranda Jordão fez do jeito dele.

Miranda sairia de cena em meados de 1968, se não me trai a memória, assim como Frei Betto, perseguido pela polícia política. Foi preso no Uruguai e recambiado para o Brasil; a partir daí desconheço suas idas e vindas. Sei que reapareceria mais tarde no Diário Popular, para o qual deu protagonismo inédito na sua história centenária.

A perseguição a Miranda Jordão rendeu um episódio ironicamente bem-humorado que teve a participação de Álvaro Luiz Assumpção, familiarmente conhecido como Meninão, empresário da noite. É justo recordá-lo.

            Meninão era um grandalhão divertido, como são os boêmios, e paulistano quatrocentão de alto costado. Seu apelido advinha de uma boate que fundou e fez enorme sucesso em São Paulo. Em certo momento, ele passou a assinar uma concorrida coluna diária, que se tornou leitura obrigatória na chamada classe A, embora fosse publicada no improvável, popularesco e sanguinolento jornal Notícias Populares. A propósito, na época, corria entre jornalistas uma piada de humor negro alusiva à cultura do diário, tendo como mote um frequente de pessoa que, sob aparência respeitável, conserva esqueletos no armário. Se for bem pendurado (no pau-de-arara), dá uma semana de manchete no Notícias Populares.

A coluna intitulava Meninão em dia com a noite e apresentava uma variada coleção de notícias quentíssimas sobre economia e política, simultaneamente ao sempre folclórico movimento da noite, que incluía artistas, transações entre empresários do setor, fofocas a respeito de músicos e crooners, novidades em rótulos e coquetelaria, vendedores de flores e o pessoal do Exército da Salvação que ia distribuir santinhos religiosos para recuperar almas mergulhadas no pecado. Esse um mundo tão ricamente diversificado poderia ser representado pela boate que os Demônios da Garoa abriram na rua Barão de Tatuí, no Centro, obviamente batizada como Saudosa Maloca, em cuja parede havia um nicho protetor abrigando uma imagem de Nossa Senhora Aparecida sob uma luzinha vermelha.

Era natural que figura tão interessante quanto Meninão atraísse Miranda Jordão e fosse fazer sua coluna na Folha da Tarde. Ficaram amigos próximos, a ponto de Miranda merecer hospitalidade na residência de Meninão, na heráldica rua Gironda, nos Jardins. Em breve futuro, essa amizade custou caro ao colunista, que acabou sendo detido pelo Deops, durante a perseguição ao seu chefe, sob a acusação de dar guarida a subversivos. Na verdade, qualquer nome, encontrado na agenda de algum preso político, também tomava o imediato destino do Deops ou da Operação Bandeirantes. Em princípio, foi algo surpreendente que um quatrocentão festivo fosse ligado à luta armada, pois era essa a suspeita que recaia sobre Miranda Jordão. E neste ponto chegamos ao humor irônico referido acima. Meninão me contou, após safar-se do grave enrosco, que estava aguardando sua vez de ser ouvido, quando um delegado do Deops, ao reconhecer a conhecida figura corpulenta e alta de Meninão, perguntou, intrigado, a um investigador. Ué, o que esse cara está fazendo aqui? É do MR-8, respondeu o policial displicentemente, para facilitar a resposta. “Eu gelei”, recordou Meninão, apertando meu braço.

Meus caminhos se cruzaram indiretamente com os de Miranda Jordão nos inícios de 1969. Samuel Wainer voltara havia pouco do seu exílio em Paris para tentar reerguer a Última Hora, que prosseguia na sua lenta e inexorável agonia aberta em 1964. Os antigos companheiros de Wainer, que haviam participado da Folha da Tarde, já estavam a postos no Rio de Janeiro para participar da ressurreição. (Claro que Miranda não estava, como gostaria, uma vez que se preocupava em preservar a liberdade).

Samuel Weiner

João Ribeiro me chamou e eu lá fui, sob promessa de um salário excelente e apartamento pago pela Última Hora. Descobri mais tarde, que tais rompantes eram típicos de Samuel. Nada disso vingou. O apartamento da Zona Sul transformou-se num simples quarto no Solar da Fossa, em Botafogo, lendário reduto hippiee da contracultura pelo qual passaram Caetano Veloso & Cia quando vieram conquistar o Sul. Quando deixei o casarão, me disseram que outro grupo, Novos Baianos, estava chegando. 

Não posso precisar quanto durou aquela ressurreição da Última Hora, mas garanto que minha incursão carioca foi de uns seis meses, sem receber um tostão. Mas fui largamente recompensado pela aventura que Samuel Wainer me proporcionou.

Que ninguém se engane: a sedução de Samuel derretia pedras!

(*) A utilização dos títulos de obras célebres – livro, música, cinema, teatro – adaptados às matérias para torná-las mais chamativas foi-me ensinada por Justino Martins, grande mestre, na revista Manchete. Apliquei-a pela primeira vez numa reportagem sobre a centenária galeria de serviços que corre sob a avenida Paulista, com o título Viagem ao centro da terra. Nada a ver com o livro de Júlio Verne, pois a minha terra foi escrita com a letra t minúscula.

José Maria dos Santos

Esta é novamente uma colaboração de José Maria dos Santos, ex-Diários Associados, Manchete, Abril e Diário do Comércio, de São Paulo, entre outros.

Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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