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quinta-feira, março 28, 2024

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Agência Pública: dois anos de jornalismo investigativo e independente

Dois anos se passaram desde que Natália Viana anunciou, enquanto recebia o Troféu Mulher Imprensa de 2011, a chegada ao mercado de uma agência de jornalismo investigativo independente e sem fins lucrativos. Nascia, então, a Pública, propositalmente no feminino, em alusão à sua parceria com Tatiana Merlino e Marina Amaral, com quem havia trabalhado na Caros Amigos. Dois anos, vários prêmios e alguns colaboradores depois, a agência segue investigando e incomodando muita gente. Inclusive quem não deveria incomodar. “Nós não queremos concorrer com grandes jornais, e sim trabalhar com eles”, conta Natália. Baseada numa bucólica vila – construída na década de 1940 por um empresário que mandou reproduzir a vila de sua infância, na Itália – na região central de São Paulo, a Pública está visceralmente ligada à Casa de Cultura Digital, coletivo de organizações e empresas que trabalham com o universo digital. Embora independentes, dividem, além do espaço, a ideia de usar a internet com maior liberdade e como ferramenta de mobilização social. São produtoras culturais, de vídeo, desenvolvedores de sites, grupos de ativismo e, no caso da Pública, jornalistas. O ambiente aprazível – com cozinha compartilhada, lounge de repouso e café sempre fresco – ameniza os assuntos trazidos à tona pela jovem Pública em suas reportagens. São investigações densas, que envolvem, essencialmente, burla aos direitos mais essenciais do ser humano. Natália e Marina receberam a equipe do Portal dos Jornalistas para um bate-papo, e contaram mais sobre o surgimento da agência, seus princípios, os desafios de fazer jornalismo investigativo e a graça da profissão: Portal dos Jornalistas – Como nasceu a agência Pública? Natália Viana – A história é a seguinte: desde o final do ano anterior [2010] nós já estávamos formatando o projeto e pensando em como ele seria, porque é um modelo muito novo no Brasil. Para marcar a data, resolvemos lançar no dia da entrega do Troféu Mulher Imprensa, e naquela semana mesmo nosso site entrou no ar com nossas primeiras reportagens, para mostrar a que viemos. Começamos por iniciativa própria, fazendo o que a gente acredita. Foram oito meses trabalhando por conta própria. Portal dos Jornalistas – E como a Pública se sustenta hoje? Natália – Logo no começo, havíamos conversado com a Ford Foundation, que já vinha desenvolvendo havia dez anos trabalhos com organizações que produzem jornalismo independente e investigativo. Faz parte da estratégia deles de fortalecer a democracia em diferentes países. Existem modelos semelhantes à Pública, que são centros de jornalismo investigativo independentes, sem fins lucrativos, em vários países. Nos últimos cinco anos, diversos começaram a surgir na América Latina, como Chile, Argentina, Peru, Colômbia, México, Nicarágua, Guatemala… Todos seguem mais ou menos o mesmo molde: sem fins lucrativos, baseados na internet, equipes enxutas, com jornalistas veteranos na coordenação e capacidade de fazer reportagens investigativas e profundas. A fundação, então, gostou do nosso projeto, disse que já estava na hora de acontecer algo parecido no Brasil e se tornou nossa financiadora. Logo depois conseguimos o financiamento de outra fundação que também trabalha nesse viés do jornalismo investigativo, a Open Society Foundations, do George Soros. Então, hoje temos esses dois financiamentos: o da Ford Foundation e o da Open Society Foundations, responsáveis por nossa operação básica, que é simples, não é um valor exorbitante. Além disso, fazemos projetos específicos que são apoiados por diferentes organizações. No final do ano passado, por exemplo, fizemos uma série bastante aprofundada sobre investimentos na Amazônia, em que mandamos equipe para ficar por 15 dias em três regiões diferentes – Tapajós, sul do Pará e rio Madeira – e fizemos reportagens extensas e três vídeos, apoiados especificamente pela Climate and Land Use Alliance (CLUA). Nesse projeto, trabalhamos em parceria com oito jornais impressos do Brasil inteiro, incluindo Jornal do Commercio (PE), O Povo (CE), Diário do Tocantins, Diário do Pará, A Crítica (AM) e a Tribuna da Bahia – jornais grandes, com reputação –, além de enviarmos o material para o Lúcio Flávio Pinto, que ficou de usar no seu Jornal Pessoal. Então temos o básico e produzimos outras coisas com outros apoios. Apesar de fundada há dois anos, a Pública tem financiamento há pouco mais de um ano. Desde o ano passado foi que começamos a trabalhar de maneira profissional, com equipe, dinheiro e produção mais fixa. Por isso, dizemos que a Pública ainda está caminhando. É uma organização muito nova, e demorou um tempo para as pessoas entenderem o que realmente somos. Acho que agora está um pouquinho mais claro, mas ainda há muitas questões sobre o que a Pública é. Somos um centro de jornalismo investigativo que produz de maneira absolutamente independente. Nem nossos financiadores nem qualquer grupo ou partido político nem qualquer organização têm o menor poder de influenciar nosso trabalho. Portal dos Jornalistas – Nem os financiadores exercem influência? Natália – No caso dos nossos financiadores, colocamos no contrato de financiamento que eles não têm acesso ao material que está sendo produzido nem o direito de influenciar. Eles vão ver o material depois de publicado, assim como qualquer pessoa do público. A Pública só faz sentido se for completamente independente. Um dos problemas do modelo comercial é que ele fica muito dependente de anúncio e, muitas vezes, o anunciante acaba tendo poder de dizer o que sai e o que não sai. Além disso, nossa produção, por ser independente e financiada como um serviço importante para o Brasil, é toda gratuita. Tudo o que está no nosso site é feito em creative commons, uma licença que permite que qualquer outro veículo nos republique. Hoje temos uma lista de 50 republicadores, entre eles Yahoo Brasil, Via Mundi, CartaCapital. Entre os jornais maiores, a Folha e o Estadão já nos republicaram. Também já fizemos parceria com o Agora e com a TV Record. Portal dos Jornalitas – E esses veículos não podem editar o conteúdo de vocês? Tudo é publicado na íntegra? Natália – Existe um acordo de republicação que diz que eles podem mudar o título, por exemplo, para se adequar ao formato do veículo. Mas o mais importante é que o conteúdo não pode ser severamente editado, e, principalmente, não podem mudar o contexto. Eles têm sido muito legais. É muito bacana ver o nosso material, que está sempre no site, publicado em veículos impressos. E a gente vai cada vez mais trabalhar assim: em parceria com veículos impressos. Portal dos Jornalistas – Vem alguém da equipe desses parceiros trabalhar em conjunto com vocês? Natália – Nós estamos abertos a trabalhar em conjunto. Nesse caso da Amazônia, não aconteceu. O que fizemos foi oferecer o produto. No final do ano passado, fizemos algo semelhante com as entrevistas do Julian Assange. Ele entrevistou 12 líderes mundiais e a Pública, que tem uma parceria histórica com o Wikileaks, traduziu a série e buscamos republicadores online que quisessem passar essa série. Foi aí que entraram Estadão, Tribuna de Minas… tudo dessa mesma forma. Queremos também desenvolver outro tipo de parceria, de custos compartidos com parceria editorial mesmo. Isso depende bastante dos veículos interessados no nosso trabalho virem buscar. Temos conversado com alguns veículos e estamos superabertos. O objetivo da Pública é fortalecer o jornalismo investigativo, que temos certeza ser importante para os grandes veículos também, mas que eles têm um pouco de dificuldade de manter porque é caro e exige mão-de-obra específica, além de muita paciência e determinação. Por exemplo, estamos com  um projeto para o qual mais de 30 mil documentos precisam ser analisados. Como os jornais cobrem a coisa do diário, é difícil para eles manterem isso, embora recentemente tenha mudado bastante no Brasil. Dentro da própria redação existem grupos de repórteres especiais, investigativos, que trabalham com a lei de acesso à informação. Está crescendo, mas pensamos que sempre vai haver espaço para uma organização como a nossa. Portal dos Jornalistas – Nesses dois anos de trabalho, sofreram algum tipo de ameaça ou represália por causa do que produzem? Natália – Já sofremos muitas críticas, o que é natural, inclusive porque as pessoas custam a entender o que é o nosso trabalho. No meio jornalístico, insistem em nos ver como concorrência, coisa que não somos. Na verdade, viemos aqui para incentivar o jornalismo e produzir de uma forma diferente do modelo de grande empresa jornalística, que tem vantagens e desvantagens. Quanto às ameaças, recebemos, sim, veladas. Alguns de nossos repórteres foram ameaçados. Quando isso acontece, destacamos na própria reportagem. Certa vez um entrevistado falou a uma de nossas repórteres que não queria vê-la acordar esticadinha no chão atravessando a rua… Ameaça nunca é daquele jeito, colocando um revólver na sua cara e dizendo que se você publicar, vai morrer. É uma coisa velada. Mas nada que nos obrigasse a tomar uma postura… Portal dos Jornalistas – Refletir, parar…. Natália – Não! Parar não! Mas tomar medidas de segurança. Parar não vamos. Isso é básico. Sabemos que temos o privilégio de fazer jornalismo exatamente com a independência que queremos. Muitos acham que é loucura, que estamos fazendo jornalismo de guerrilha… Mas o que temos são a coragem e a possibilidade de denunciar o que acontece com bastante liberdade. E não vamos parar. Já recebemos ameaças de processos, mas nenhum concretizado. E temos muito cuidado com o que publicamos, checamos documentos. Uma coisa que aprendemos com o Wikileaks foi a deixar disponível todo o material que serviu de fonte durante a reportagem. Um dos princípios do Wikileaks é que os veículos devem permitir acesso aos documentos para que o público decida se aquilo é verdade ou não. E isso serve para duas coisas: primeiro, para embasar nosso texto, para mostrar que nosso trabalho é sério; e, segundo, para que o público questione. E questionam! Isso eu acho muito legal! Por sermos baseados na internet, o público se sente muito à vontade, se sente íntimo e fala “ei, Pública, vocês erraram nisso aqui!“. Temos uma política de que o nosso repórter deve estar disponível para esse bate-papo depois. Portal dos Jornalistas – E sobre a equipe ser formada majoritariamente por mulheres, isso é proposital? Natália – Não foi de propósito. Quando decidimos criar a Pública, por acaso éramos três mulheres que estavam dispostas a encarar esse desafio. Então, pensamos no nome, que cogitamos Público, veio o Pública, no feminino. A equipe foi naturalmente se formando por mulheres, que chegavam e batiam na nossa porta dizendo que se identificavam com o projeto. As mulheres estão mais dispostas a apostar em coisas novas. Não estão buscando a estabilidade, ascensão. Estão querendo apostar nos seus sonhos. Mas nós não temos política sobre isso, não é uma discriminação. Portal dos Jornalistas – O que um repórter precisa ter para ser um bom repórter investigativo? Natália – Um bom repórter investigativo, para mim, é uma pessoa que é curiosa desde berço. A imagem que tenho de um bom repórter investigativo é a de um gato quando vê uma gaveta aberta: ele não consegue deixar de entrar ali. Ele não consegue! E é engraçado quando você vai aos congressos da Abraji e conhece jornalistas investigativos; é todo mundo igual. São pessoas obcecadas, que querem entender o que está acontecendo. Eu não concordo quando dizem que todo jornalismo é investigativo e que, se não for investigativo, não é jornalismo. Não concordo mesmo. Acho que o jornalismo de notícias é importantíssimo, o de celebridades também é importante… Acho horrível quando falam que só um tipo de jornalismo é válido. O jornalismo investigativo é um tipo específico. Outro dia estava conversando com o editor de um portal e disse que queria trabalhar em parceria conosco, porque não podia deixar um repórter dois dias numa pauta. Se alguém me der dois dias para uma pauta, acho que morro! Eu não consigo. Se alguém me der uma matéria para fazer hoje, não vou conseguir. Vai ficar péssima. E admiro muito quem consegue fazer isso. Eu não consigo. Faço outro tipo de trabalho. Por exemplo, a Marina uma vez passou seis meses entrevistando um cara do DOPS, e tudo o que ele falava ela queria checar, porque não sabia se ele estava mentindo ou não. Até o ponto de ela passar um fim de semana inteiro lendo todos os Diários Oficiais de São Paulo para descobrir se ele tinha sido empregado onde dizia. Esse é o jornalista investigativo. Curiosidade, método e obsessão são as palavras. Método é importante. Marina – Em primeiro lugar, é preciso ter uma meta. O jornalista precisa saber o que está procurando. Se juntar uma quantidade gigantesca de material, precisa ter a dimensão de que aquilo será publicado. Quando tiver o lide, precisa parar de pesquisar. Depois, pode até continuar uma outra vez. Isso de não termos uma pressão tão grande de prazo pode ser um problema para esse tipo de matéria. O repórter pode acabar se aprofundando demais, principalmente por conta do acesso a documentos online que temos hoje. Tem que ter essa noção de buscar o lide. Repórter não é pesquisador, faz notícia. Portal dos Jornalistas – Quanto tempo leva para produzir um reportagem como as da Pública? Natália – Varia muito. No momento, estamos fazendo reportagens que consideramos de médio prazo. Existe um tipo de reportagem, onde a gente quer chegar, que levam um ano para serem feitas, mas ainda não temos estrutura para isso. Na Pública, em geral, fazemos matérias de dois, três meses. Nunca menos de um mês. As exceções são as da Copa. Portal dos Jornalistas – Quais são os critérios para que uma pauta se torne reportagem da agência? Natália – O critério principal é que envolva Direitos Humanos e transparência. Também escrevemos sobre meio ambiente. Mas a ideologia da Pública é abordar direitos humanos e justiça social. Atualmente, temos três linhas que são foco de nossa estratégia, três temas que a gente acha que nos próximos anos serão cruciais para o fortalecimento da democracia no Brasil: tortura no passado e no presente, Copa do Mundo e Amazônia. Portal dos Jornalistas – Natália, por que escolheu o jornalismo como profissão? Natália – Costumo brincar que entrei no jornalismo pelos motivos errados: eu era muito curiosa e gostava de escrever. O primeiro emprego que arrumei foi em um portal de internet, em que eu escrevia sobre a vida cultural de São Paulo. Ficava num prédio na Berrini. Eu trabalhava dez horas por dia, recebendo releases e mentindo, dizendo que a peça tal era ótima sem nem ter visto. Fiquei nesse trabalho por um mês e todos os dias chorava no banheiro. Ligava para minha amiga dizendo “não é possível que seja isso!“. Eu estava indignada, porque, veja, se eu fui fazer jornalismo porque era curiosa e gostava de escrever, não estava nem conseguindo saciar minha curiosidade, nem podendo escrever. Depois conheci o Sérgio de Souza, da Caros Amigos, e pedi para aprender a fazer jornalismo com eles. Disse que largava tudo para ser estagiária lá. E assim fizemos. Uma vez você tendo aprendido a fazer jornalismo, não larga mais. Mesmo os jornalistas mais experientes, quando dizem que estão cansados e que vão parar, se cair um boa pauta no colo, vão fazer. Não conseguem não fazer. Uma vantagem da nossa geração e da geração mais nova é ter essa possibilidade de fazer independente,emte de estarem ou não em um veículo grande. Algumas coisas baratearam muito, a começar pelo equipamento técnico. Outra coisa é a possibilidade de divulgação, a comunicação com a maior parte do mundo. A Pública, por exemplo, tem 30 sites parceiros com quem temos diálogos diretos, com quem a gente consegue conversar sem gastar um tostão. Então, é próprio da nossa geração e das outras que virão que o jornalismo seja mais possível de fazer de maneira independente. Para mim, sempre foi uma opção de vida muito mais válida do que entrar numa empresa para fazer matérias com as quais não concordo, que pouco acrescentariam no meu dia a dia, até chegar o dia de ter a possibilidade de fazer alguma coisa. Eu nunca trabalhei numa grande redação. Portal dos Jornalistas – Marina, o que a motivou, já sendo profissional experiente, a investir na Pública? Marina – Eu trabalhei por dez anos na grande imprensa e por outros dez na imprensa alternativa. Fui diretora da Editora Casa Amarela, que publica a Caros Amigos, onde também fui editora-executiva e repórter. Ali era um terreno que eu conhecia tanto do ponto de vista empresarial, porque era uma das donas, como do lado jornalístico, viajando como repórter. O que a gente vê é que publicações em suporte papel têm uma grande dificuldade de permanecer independentes, porque o custo gráfico é muito grande. E na grande imprensa você tem pouca liberdade para trabalhar. A falta de recursos compromete a sua independência, porque se você está devendo, como pessoa física ou jurídica, torna-se mais vulnerável. Acho que uma coisa que se discute muito pouco é que o jornalista não tem liberdade de fato. A liberdade é dos patrões. Começa porque já se está fazendo um pauta pré-determinada. Precisa ser alguém de grande liberdade moral para sair com uma pauta e voltar com outra coisa. Depois, ainda tem a edição, que pode distorcer o texto… Eu fiquei pensando que o jornalismo continua sendo uma coisa importante como meio de comunicação social, como forma de contribuir em discussões da sociedade etc.. E como se vai contribuir para o jornalismo num quadro como esse, em que há concentração enorme de mídia, com pouquíssimos veículos que fazem jornalismo realmente – concorde-se ou não com opções ideológicas – e, por outro lado, se tem a imprensa alternativa que não sobrevive? Essa minha inquietação encontrou com a inquietação da Natália, que tinha experiências diferentes das minhas, e juntas chegamos a essa fórmula de construirmos um centro de jornalismo que se torna um exemplo de como se pode fazer na prática, em vez de ficar só na discussão. E é essa aposta que eu faço com a Pública. Portal dos Jornalistas – Há planos de o conteúdo da Pública não ficar só na internet? Natália – Sim. Temos planos de livros e documentários. Além de querermos desenvolver mais parcerias como a do projeto na Amazônia, com vários jornais, e sermos publicados em impresso. Nosso texto tem muito a pegada do impresso, somos jornalistas com base no impresso. Além do mais, pensamos no nosso site como uma prateleira de reportagens, em que os veículos podem pegar o conteúdo e publicar em seus sites, para daí, sim, atrair leitores. A Pública não é exatamente um veículo, é uma agência que distribui o seu conteúdo. O leitor é leitor dos veículos. É uma parceria muito próxima, que faz parte do DNA da Pública.

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