Por José Maria dos Santos

A morte de Éder Jofre, em 2/10, embora devesse me provocar consternação pelo ser humano de qualidade que foi, traz-me apenas lembranças reconfortantes e até divertidas.

A primeira se refere ao seu pai, Kid Jofre, um homem sábio e consequente. Era argentino, veio para o Brasil, casou-se com Angelina Zumbano e dessa união surgiu nossa preciosa dinastia pugilística Jofre-Zumbano, que, num milagre genético, produziu nosso “galo de ouro”, Éder Jofre, campeão mundial dos pesos-galo na década de 1960 e, nos anos 1970, dos pesos-pena. A união também era temperada por ares esquerdistas, pois um dos tios de Éder, Ralph Zumbano, também pugilista, foi, salvo engano, deputado estadual em São Paulo pelo PCB e nele perseverou até o fim.

Nas coberturas rotineiras que fiz para a Manchete, durante a escalada do filho rumo ao título dos Pena nos anos 1970, estabelecíamos, eu e Kid, longas conversas sobre assuntos variados. Em um deles sinalizou-me sobre sua maneira de educar Éder e seu irmão mais novo.  Levava-os ao centro de São Paulo na época de Natal para admirarem a vitrine do Mappin, que era um verdadeiro palácio de maravilhas natalinas. Mostrava o material ricamente exposto e prevenia que “papai não tinha recursos para comprar aqueles presentes, que se contentassem com coisas mais modestas”.

Era ironicamente bem-humorado. Nas apresentações do filho, costumava promover lutas preliminares amadoras de alunos da sua academia. Em certa ocasião, após perder as cinco lutas preliminares programadas, passou por mim e disse. “Espero que Éder quebre a minha invencibilidade de hoje”. (Éder faria a luta final daquela rodada com o mexicano Wong alinhado entre os dez primeiros do ranking de pesos-pena, que nosso campeão devia derrubar para chegar ao título.) A principal característica de Éder no ringue era a de liquidar o combate no primeiro round com seu célebre gancho de direita na ponta do fígado de adversário. Assim foi naquela noite. Robert Wong, bem mais alto do que Éder, girou sobre si mesmo, debruçou-se nas cordas e lançou sobre mim e um colega, que suponho ser, após tanto tempo, o querido Paulo Moreira Leite, do Jornal da Tarde, fartos borrifos de suor, saliva e alguns goles do Gatorade da época.

Outra brincadeira recorrente de Kid referia-se ao seu cunhado e também ex-lutador Waldemar Zumbano. Kid aconselhava-me como se fosse um mantra. Não fique perto dele durante a luta, que vai sobrar um “um/dois” para você. Tratava-se de um movimento veloz de dois diretos seguidos sobre o adversário, que devia ser a tática favorita de Waldemar nas suas antigas lutas, favorecido pelos braços mais longos; na sua peculiar maneira de torcer, distribuía golpes ao seu redor durante os combates do sobrinho supercampeão. Às vezes o movimento era tão intenso que seus óculos voavam.

Sinto-me ligeiramente protagonista do título mundial dos pesos-pena naquela noite de 5 de maio de 1973, um sábado, no ginásio de Brasília. Na verdade, penso que, indiretamente, minha participação foi decisiva ao abalar a segurança de Jose Legra, o então campeão, adversário de Éder na disputa. Eis o que se passou. Cubano naturalizado espanhol, ele fez seus últimos preparativos em São Paulo. Uns sete dias antes do confronto, levei-o para o estúdio da Manchete, anexo à redação, na Rua 24 de Maio, 24, 11º andar, para fazer a foto que ilustraria a capa da revista na edição a ser lançada na quarta-feira que antecederia o confronto.

Memórias da Redação: O Galo voou! Éder Jofre
Eder acerta direto em Legra na luta de 1973

Legra, que teria treino a seguir, esqueceu sua bolsa no táxi que o trouxera, com o par de luvas favorito; jamais soube dela. Na prática, responsabilizou-me pelo incidente. Se o olhar matasse, eu não estaria mais neste mundo. Mituo Shiguihara, que fez as fotos, confessou-me temer que a indignação de Legra iria velar os filmes, tanto bufava. Tempos depois, ao comentar o episódio com Éder, disse-lhe que a vontade de Legra seria aplicar-me um uppercut no queixo. Éder riu.

− Você estaria dormindo até hoje. Ele me pegou forte na testa, um verdadeiro coice.

(Se a lembrança não me trai, foi no terceiro round).


Memórias da Redação: O Galo voou! Éder Jofre
José Maria dos Santos (Foto: Zanoni Fraissat-Folhapress)

Esta é novamente uma colaboração de José Maria dos Santos, ex-Diários Associados, Manchete, Abril e Diário do Comércio, de São Paulo, entre outros.

Nosso estoque do Memórias da Redação continua baixo. Se você tem alguma história de redação interessante para contar mande para [email protected].

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