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quinta-feira, abril 18, 2024

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Memórias da Redação ? Ein Hürensohn!

Plínio Vicente, ex-Estadão, hoje atuando no Jornal de Roraima, volta a nos brindar com outro de seus deliciosos textos. Ein Hürensohn! Vivi sete anos da minha infância e pré-adolescência internado na Santa Casa de São Paulo. No começo da segunda metade do século passado, o Pavilhão Fernandinho era uma referência da Medicina ortopédica no Brasil e quiçá da América do Sul. Os anos em que lá passei marcaram minha vida por uma série de fatos e circunstâncias, mas foram também um continuar ininterrupto de lições inesquecíveis, que me ajudaram, inclusive, a ser um sujeito bom caráter e um jornalista até certo ponto razoável. Aprendi principalmente com a dor alheia, que me mostrou uma dura realidade: eu não tinha direito de reclamar, pois olhando para trás descobri a companhia de seres humanos que enfrentavam situações desesperadoras. Na verdade, eu era um felizardo e ainda não sabia. No entanto, vivi momentos que não desejo ao pior dos meus inimigos. Se é que os tenha, pois até hoje não me recordo de alguém capaz de guardar algum rancor deste velho jornalista caipira. Fui submetido a várias cirurgias e entre uma e outra havia um interregno em que nós, os pacientes do tratamento da pólio, éramos atirados no inferno da tortura, o da fisioterapia. É bem verdade que nesse período pré-histórico o nome não era esse, dizia-se ginástica de recuperação. Não tive como fugir e acabei cobaia de métodos introduzidos no Brasil então muito recentemente, como o da massagem sueca, trazido por um alemão enorme, Manfred Rusk, mãos de madeireiro. Quando as utilizava, parecia estar manejando um machado, tamanha era a ignorância com que o fazia. Logo depois de ser cortado na altura do quadril e no joelho direito, passei três meses engessado até o pé. Obviamente que nesse período minha perna e tudo o que havia nela foram tomados por uma inevitável atrofia. Passados os 90 dias, chegou o momento em que me levaram para uma sala onde um sujeito também brucutu muniu-se de um tesourão e como se estivesse rasgando lona de caminhão foi viajando de cima abaixo, pondo minha perna a descoberto. Feito isso, me avisou que o massagista viria terminar o serviço. O que, como descobri depois, seria uma sádica sessão de torturas. No começo o alemão até que foi gentil. Lambuzou minha perna toda de um óleo malcheiroso e fez uma massagem suave, delicada, impensável para quem visse aquelas mãos de açougueiro. Mas em seguida, sem pedir licença, me virou de bruços, pós a mão esquerda na parte posterior da coxa, enfiou a mão direita espalmada sob a canela e num movimento brusco, com a insensibilidade de um desalmado, fez minha perna dobrar 90 graus. Ouvi um estranho “craaaaaaac” e senti todo o meu corpo sendo tomado por uma sensação de estremecimento até que, num átimo de segundo, ela chegou ao meu cérebro. Nunca sofrera, não sofri depois e nem espero sofrer um dia, até que a morte me convide para dançar, uma dor como aquela. Fulminante, lancinante, dilacerante e muitos outros antes. Lágrimas escorreram aos borbotões dos meus olhinhos inocentes, tão densas que sequer tive reação para gritar. Com um sorriso frio de belzebu, o mastodonte travestido de fisioterapeuta olhou-me sem qualquer piedade e perguntou: – Hat es weh getan? Filho de alemã, ainda dominava o idioma teuto que mamãe usava conosco quando não queria que estranhos soubessem o que estava falando. A primeira reação à pergunta – Doeu? – foi a de dar-lhe um coice, mas cadê pernas para isso? Então, ainda me debulhando em lágrimas, gritei com todas as minhas forças: – Ein Hürensohn!!!!!! Pelo tamanho da minha dor, considerei que a mãe dele estava muito bem xingada…

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