Por Nelson Nunes

Eu sou do tempo em que a editoria de Esportes costumava ser confinada ao “fundão” da redação, muitas vezes tratada com certo desprezo pelos pretensos núcleos de inteligentzia daquela máquina de fazer jornal e de moer gente. Julgados à luz do estereótipo próprio a qualquer bando de meninos bagunceiros da classe, os cronistas esportivos sofreram com essa imagem preconceituosa, reforçada pela prática diária de quem se lambuzava com embates sobre esquemas táticos, memórias de gols de eras mezozoicas do calccio ou longas discussões sobre a linha de impedimento. Tudo isso entremeado a comentários sexistas sobre as moças bonitas da redação e uma pitada ou outra de máximas do machismo que hoje seriam justamente condenáveis em qualquer ambiente, sobretudo num local de trabalho que, em tese, deveria servir como panteão da pluralidade.

Sim, de fato, os jornalistas esportivos, salvas as exceções da regra, ajudaram a reforçar essa ideia de alienação, até que, um dia, profissionais e veículos acabaram dando-se conta de que havia muito mais valor naquele mundinho do que poderia supor a nossa vã filosofia de acreditar que o mundo era uma bola. Assim, com o passar o tempo, os cronistas esportivos foram se aperfeiçoando na prática do dia a dia, melhorando sua formação geral, abrindo horizontes para muito além do 4-3-3, até ganharem mais visibilidade na redação, relevância no produto final e respeito na audiência. Não à toa, em muitas cidades brasileiras, o caderno de esportes ganhou musculatura, adotou novos leiautes gráficos, criou linguagem inovadora, ao ponto de ser reconhecido como um grande pilar do negócio. No mais das vezes, a porta de entrada de novos leitores para os antigos e conservadores jornalões. 

Para todos nós, que jogamos esse jogo, o ápice da carreira profissional era merecer a credencial para a cobertura de uma Copa do Mundo. Alguns monstros sagrados da crônica, ainda vivos, acumulam mais de dez Copas no currículo. Eu, humildemente, cobri três como repórter: México-86 (por A Gazeta Esportiva), Itália-90 e EUA-94 (ambas pelo Diário Popular). Depois, como editor de esportes e editor-chefe do velho Diário, coordenei a cobertura de pelo menos mais quatro. De cada uma delas restaram a saudade de um tempo em que o jornalismo ainda se fazia com o jornalista farejando a notícia no front, com inacreditáveis obstáculos tecnológicos se comparados com as modernidades de comunicação que vieram com a internet, e uma coleção de boas histórias para contar.

Revirando meu baú de memórias, escolhi para este momento o dia 17 de julho de 1994, data da final da Copa dos Estados Unidos. Pasadena, Califórnia, 40 graus! Estádio Rose Bowl. Numa tribuna de imprensa improvisada no anel de arquibancadas do gigantesco estádio, tomado por 94.194 expectadores, com sol a pino na cabeça, escrevi parte da história do tetra ao lado dos colegas Sérgio Carvalho, Paulo Cézar Correa, Carlos Alencar, Paulo Roberto Pereira e Luís Augusto Mônaco.

É TETRA!
Nossa equipe na tribuna de imprensa do estádio de Stanford: eu (esq.), Guto, Paulinho, Sérgio e Carlos

Chegamos ao estádio umas cinco horas antes do início da partida. O intervalo era necessário para marcar território na sala de imprensa antes que ela estivesse lotada e vencer as barreiras impostas pelo excessivo, quase paranoico, sistema de revista das forças de segurança contratadas pelo Comitê Organizador do mundial americano. A polícia, o exército e a tropa de uma espécie de “Fonseca´s Gang” dos gringos eram implacáveis com bolsas, mochilas, casacos, equipamentos e tudo o que, na opinião deles, pudesse significar uma ameaça. Nada passava sem ser rigorosamente checado. Os cães farejadores lançavam olhares intimidadores em todas as barreiras instaladas dentro e fora do estádio, o que me levava a perguntar, intimamente, como os terroristas conseguiam tantas ações exitosas em território americano. Nunca perguntei qual a razão e temi que achassem o bagulho que eu levava no bolso: um pão de queijo todo amassado que eu tinha pegado no café da manhã com a certeza de que aquele seria meu almoço do dia.

A história do jogo todo mundo conhece. Com um persistente 0 a 0 no placar, no tempo normal e nos 30 minutos da prorrogação, a despeito de uma bola na trave chutada por Mauro Silva (o lance que “viralizou” nas resenhas pós-jogo pelo fato de o goleiro Pagliuca ter dado um beijo no poste assim que a bola ficou segura em suas mãos). Assim, a decisão foi para os pênaltis. 

“Vai que é sua, Taffarel!”, gritava Galvão Bueno, logo ali pertinho da gente, no quadradinho da tribuna de imprensa reservado à TV Globo, a cada defesa do goleiro brasileiro. Galvão, Pelé e Arnaldo eram uma atração à parte no cenário da grande final. Era como se fosse noite do Oscar e ali estivessem Antony Hopkins, Brad Pitt, George Clooney… gente desse calibre.

No quadradinho reservado ao Diário, eu e Guto Mônaco recebemos a ordem para sairmos antes do encerramento da disputa de penalidades para chegarmos o mais rápido possível à área da zona mista, onde os jogadores passavam para dar entrevista fora da coletiva oficial de praxe organizada pela Fifa com os técnicos e capitães das duas seleções. Dada a confusão do lugar, a zona mista justificava o nome de batismo. Era, como ainda hoje, um corredor, quase um front de guerra, onde os jogadores passam atrás de uma corda e param para falar onde querem, com quem bem entendem. Do lado de cá da corda, sempre vigiados pelos cães farejadores da polícia, jornalistas do mundo todo se estapeiam para conseguir umas aspas. Hoje bastaria esperar pelo que eles publicam no Twitter.

A caminho da zona, paramos numa fresta da arquibancada para ver Roberto Baggio em ação. O estiloso cabeludo da Azzurra, o craque do time, ajeitou as madeixas, passou a mão no calção, deu uns passos para trás e parou na meia lua, encarando Taffarel. Havia um profundo silêncio no ar. Era possível ouvir respirações aqui e acolá. Tensão e expectativa. Eu já havia estado em duas Copas e jamais tinha visto o Brasil ser campeão. Na redação já se espalhava a zoeira de que eu era o pé-frio. Quando Baggio corre pra boa e chuta nas alturas, senti sair do meu ombro também um peso, que certamente pesava muitas mais toneladas na ponta da bota daqueles que defendiam a Pátria de Chuteiras. 

Brasil 3 a 2… 

Depois de 24 anos de seca, o País do Futebol voltava a botar a mão no caneco e a soltar o grito de campeão. Campeão, não!  É TETRA! É TETRA! É TETRA!, repetia Galvão, se esgoleando, abraçado a Pelé como se fosse dele o passe para o milésimo gol do Rei. Mais comedido, sem alarde, abracei meu companheiro de reportagem e a ele confessei meu alívio pelo fim daquele tabu pessoal, que não interessava nem comovia absolutamente mais ninguém além de mim naquele mar de gente. 

É TETRA!
Eu e Gerson (Canhotinha de Ouro), na festa do título Brasil x Itália

Ao receber a taça, num palco armado para a cerimônia de premiação bem perto da tribuna de imprensa, o capitão Dunga, que vivia às turras com os jornalistas brasileiros, a quem ele imaginava numa trincheira inimiga da Pátria, colocou o último tijolo no seu castelo de ressentimentos. Com a taça de ouro nos punhos erguidos, virou-se para os jornalistas e desfiou sua ira revanchista, com palavras que lhe serviam de vingança pelo fato de ter sido duramente criticado desde a Copa da Itália, quatro anos antes, quando o fracasso do futebol brasileiro ficou chancelado com o selo que levava seu nome a tal “Era Dunga”.

Longe do nosso herói do momento, ali incensado pela conquista do tetra, encontro Guto Mônaco tocado pelo drama do vilão − Roberto Baggio, ou a prova flagrante de que o futebol tem sempre duas verdades, a de quem ganha e a de quem perde. Sempre atento aos mínimos detalhes, especialista em achar notícia nas entrelinhas do que está posto, Guto me conta de uma foto que acabara de fazer na saída do vestiário italiano. Deserdado pelos tifosi italianos, condenado a ser o “Dunga deles” depois do fracasso da vez, Bob Baggio saía do estádio amparado pelo abraço sincero da mulher, dos filhos e do pai. Em famiglia, lá foram os Baggio afogar suas mágoas num chianti qualquer enquanto o Brasil voltava a sorrir e a sambar…

É TETRA!
Baggio, com a filha, a esposa (esq.) e os pais

E eu, perdido nos devaneios daquele momento histórico do futebol, me deixei levar pelo pensamento de como seria a chegada da Squadra Azzurra a Roma. Correria, protestos da torcida, ameaças, xingamentos, vaias, paus, pedras, tomates, ovos… Por um segundo, me vi editor de uma improvável versão em português do róseo La Gazzetta dello Sport, pronto para batucar a manchete do dia seguinte: 

É TRETA! É TRETA! É TRETA!


Nelson Nunes

Nelson Nunes, ex-Gazeta Esportiva, Folha da Tarde, Jornal da Tarde, SBT, Jovem Pan e revista Propaganda e Marketing, esteve por 22 anos no extinto Diário de S.Paulo.

A série Histórias do Jornalismo Esportivo traz causos vividos por profissionais da imprensa esportiva ao longo de suas trajetórias, como parte da campanha de divulgação do novo Prêmio +Admirados da Imprensa Esportiva.

0 0 votes
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments