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quinta-feira, abril 25, 2024

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Em tempos de pandemia e racismo

Por Ubirajara Júnior

A morte do negro George Floyd nos Estados Unidos detonou mais uma bomba de protesto naquele país, cujos estilhaços alcançaram vários países. O assassinato, cometido por um branco, foi mais um de uma vasta coleção da Polícia norte-americana. Diversas mortes desencadearam movimentos sociais que transbordaram para diversos Estados, mas Floyd foi o primeiro, que me lembre, a reverberar em outros idiomas com o mesmo leiaute.

Racismo é uma coisa execrável em qualquer sociedade humana. Todavia, a mim parece que a questão, como num caleidoscópio, tem nuances, coloridos e formatos variáveis. Portanto, não pode nem deve ser vista e discutida com um único diapasão. Na minha visão, por exemplo, a questão do racismo deve ser encabeçada pelos brancos que são devedores e não credores de uma fatura em aberto.

Os ecos dos apelos de Floyd antes de morrer chegaram até nós, mas esvaeceram céleres porque o momento político tinha outros interesses e já existia a pandemia.

Retido por mais tempo dentro de casa em função da Covid-19 deparei-me com memórias já bem descoloridas pelo tempo, mas significativas neste momento. Algumas tiveram como espaço redações por onde passei.

Por exemplo. Em meados dos anos 70 do milênio passado, quando cheguei ao mercado a presença de negros nas redações de São Paulo era praticamente nula. Apenas os dedos de uma das mãos eram suficientes para fazer a contagem. Hoje, acho que já dá para usar as duas.

Para meu gáudio, quando fui encaminhado pelo saudoso José Louzeiro ao Adilson Laranjeiras, um dos chefes de Reportagem da Agência Folhas, este defendia a tese de que a Folha devia contratar jornalistas negros. Com o passar dos primeiros meses percebi que não fora fácil quebrar a resistência de muitos na casa, ainda mais num momento em que a presença dos diplomados era rigidamente rejeitada pelos veteranos, forjados pelas aldravas das redações.

Poucos anos depois, vencidas várias investidas racistas, fui cumprir uma pauta na então Emurb, empresa municipal que cuidava do urbanismo paulistano. À medida que os repórteres chegavam para uma coletiva eram acomodados num grande sofá na sala de espera.

Quando já éramos quase 20 pessoas, a secretária do diretor chamou pela copeira, uma negra com mais ou menos uns 40 anos, e pediu que servisse café para os jornalistas.

Com um carrinho de copa, a mulher começou a servir as pessoas que estavam sentadas no sofá. Depois de servir o colega que estava à minha direita passou por mim e serviu o seguinte. Percebendo o fato, a secretária interveio.

− Dona Cláudia, a senhora esqueceu-se de servir o Bira.

− A senhora disse que era para servir os jornalistas − retrucou.

− Está certo, mas ele também é jornalista.

A copeira não se alegrou com a informação. Afinal, ali estava um negro que conseguira atravessar a borrasca e seria tratado com a mesma reverência. Ao contrário, fechou o semblante e me serviu sem me levantar os olhos.

De todos os gestos de racismo que sofri esse foi o único que me feriu. Não porque foi um golpe desferido por alguém da mesma cor, mas porque lançado por uma pessoa cuja falta de instrução e formação incorporou e assimilou a mensagem de inferioridade e incapacidade apresentada aos negros desde há muitos séculos, como se fora uma sina a ser aceita sem discussão.

A meu ver, esse axioma é que deveria ser o fulcro das diversas entidades que defendem a causa negra no País. Esclarecer os negros informá-los, prepará-los, educá-los deveria, creio, ser o principal item de suas cartilhas de ação. Mas, infelizmente, outras questões são prioritárias, até porque transitar pela periferia é cansativo e empoeira muito os sapatos.

Ubirajara Júnior

A história desta semana é uma colaboração de Ubirajara Júnior, que teve passagens por Folha de S.Paulo, Diário Popular, TV Globo, TV Gazeta, SBT, Rádio Gazeta, Autolatina, Radiobras (Brasília), Secretaria Estadual de Esporte e Turismo (S. Paulo), Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Jornal da Ciência (SBPC) e Agência Espacial Brasileira (AEB). Diz que depois de 41 anos de atividade resolveu cuidar só da própria vida e se aposentou.


Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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