Por Mauro Zafalon

A primeira vez que entrei na agora centenária Folha foi em 1968. O jornal promovia uma série de debates sobre a situação do País com alguns bispos da ala mais progressista da Igreja Católica, entre os quais dom Cândido Padin e dom Hélder Câmara.

O evento ocorreu em setembro, três meses antes do AI-5, em um anfiteatro que ficava na entrada do jornal. A efervescência política do momento deixou o auditório lotado, principalmente por estudantes. Eu, à época cursando Ciências Sociais, tive direito a foto na primeira página do jornal.

Alguns anos depois, em 24 de fevereiro de 1972, um dia muito confuso para São Paulo, fiz teste para uma vaga no jornal. Enquanto estava na Redação, o edifício Andraus, a poucos quarteirões da Folha, pegou fogo. Foi difícil a volta para casa.

Uma semana depois, iniciei na Folha, que então completava 51 anos. O trabalho era um misto de revisão com uma função chamada “olheiro”.

Era feita uma avaliação dos erros mais graves logo na saída dos primeiros exemplares da rotativa. Em uma das vezes em que a máquina foi desligada para correção, havia uma foto de ponta-cabeça.

A estrutura para se fazer o jornal naquela década não tem nada a ver com a de hoje. Um calor senegalês, que nos obrigava a trabalhar com a camisa aberta no verão, e um cenário multicolorido, dado pelas pastilhas da parede, do teto e do piso da Redação.

A interação entre os jornalistas era muito forte. Sem internet e sem um banco de dados online, as dúvidas eram resolvidas com as “memórias aguçadas” de alguns jornalistas. Com isso, o som de centenas de máquinas de escrever misturava-se a um contínuo papo entre as pessoas.

A movimentação era grande. Os dois prédios do grupo chegaram a abrigar oito Redações: Folha de S.Paulo; Folha da Tarde (hoje Agora), Última Hora, Notícias Populares, Cidade de Santos, A Gazeta, A Gazeta Esportiva e Gazeta Mercantil. Os bares no entorno eram agitados, tanto nas conversas como no conteúdo delas.

A apuração das matérias era bem mais lenta e dificultada do que hoje. Ou se usavam os pesados telefones pretos, ou os fuscas amarelinhos da empresa. A chegada do fax apressou um pouco as coisas.

No fim dos anos 1970, passei para a Redação de A Gazeta. Na greve de 1979, aprendemos que era possível fazer jornal, embora de péssima qualidade, sem jornalistas. Os jornais não deixaram de circular.

Demitido na greve, fiquei longe da Barão de Limeira, sede da Folha, por três anos. Em 1984, já de volta, as discussões sobre os rumos que o jornal deveria tomar se acentuaram, com as novas orientações do projeto editorial e do Manual da Redação.

As propostas do jornal de ser crítico, pluralista, apartidário foram importantes. O engessamento de regras, avaliações profissionais e um assíduo controle de erros levou parte da Redação a se opor às novas regras. O resultado foi um abaixo-assinado encaminhado à direção do jornal, do qual participei.

O engajamento nas Diretas-Já trouxe para dentro do jornal um ânimo novo relacionado à política. Na década de 1980, porém, o jornal evoluiu muito também na área de serviços.

Com uma inflação galopante, os consumidores acordavam com um potencial de renda e iam dormir com outro bem menor. A Folha avançou muito na cobertura dos indicadores essenciais de orientação para o leitor.

O jornal criou quatro páginas completas de cotações, as mais variadas: agrícolas, financeiras e de acompanhamento inflacionário e industrial. Eu terminava o dia e começava a noite apenas com números na cabeça.

No setor agrícola, a defasagem das informações era muito grande. A Folha passou a coletar diariamente preços de 16 produtos agropecuários em 50 locais do País. As informações passaram a ser parâmetro para vários tipos de contrato nos setores privado e de governo.

As informações do jornal passaram a ganhar tanta importância no mercado que eram frequentes as tentativas de suborno, tanto de empresas como de pessoas físicas, pedindo a subida ou a redução dos preços no final de mês.

Apenas um caso. Em um determinado período, os preços do suíno estavam bastante reduzidos. Todo final de mês, uma senhora ligava, pedindo insistentemente que elevássemos os preços no jornal e oferecendo uma compensação. Depois de tantas ligações, perguntei qual era o motivo. Disse que recebia a pensão do ex-marido em arrobas de suínos e que os preços atuais estavam afetando a sua renda.

Um dos períodos de maior tensão para mim foi em 1989. Estava de férias fora do País e fui chamado para voltar porque devia tocar um projeto especial de apuração de eleições. Os resultados, à época, saíam muito lentamente.

Graças a uma coleta feita diretamente nos tribunais eleitorais de cada estado, a Folha antecipava o resultado.

Acontece que o jornal, com base em pesquisa de boca-de-urna do Datafolha, havia cravado, em manchete, a disputa no segundo turno entre Lula e Collor, mas, à medida que as informações da Bahia chegavam, Brizola se aproximava.

Todos os dias eu apresentava esses dados a Otavio Frias, e ele perguntava: “Estamos indo bem? A previsão vai se confirmar?” Não eram respostas fáceis.

A maior frustração no jornal foi quando descobri que a Secretaria de Planejamento tinha errado o percentual do reajuste salarial semestral de todos os trabalhadores do País, em 1985.

Apontei o erro para o editor e fiz uma reportagem com os dados corretos. A Folha deu a matéria que veio de Brasília, com as informações erradas e, no rodapé, colocou apenas: “Mas, segundo cálculos da Folha, o percentual deveria ser 86,02%”.

Alto e bom som, o secretário de Redação gritou: “Zafalon, se você colocou erro no meu jornal, eu corto seu saco e te demito”.

Após uma noite mal dormida, ao entrar na Redação no dia seguinte, ouço o editor gritar meu nome. Ferrou, pensei. Mas ele apenas me comunicava o acerto das contas e que o jornal pedia uma página sobre o assunto. Após uma conversa não muito amigável, convenci-o de que nada mais tinha a escrever e acrescentei que o jornal deveria ter aproveitado a matéria do dia anterior.

A jornada mais longa de trabalho foi regada a pizza e café. Em 1986, começamos a elaborar o caderno com preços tabelados pelo Plano Cruzado no período da manhã e só terminamos na tarde do dia seguinte, sem descanso.

As conversas com o Sr. Frias (Octavio Frias de Oliveira) sempre eram motivo de preocupação. Conhecedor profundo do setor agropecuário, minha área, não dava margem a deslizes, principalmente no que se referia à avicultura.

São tantos anos na Folha que às vezes me pergunto o que muitos já perguntaram: por que tanto tempo?

Não sei. Talvez pela liberdade e pelas propostas de trabalho aceitas pela direção e pelos editores. Estes não foram poucos. Somam 23 nessa segunda fase no jornal. A minha coluna, Vaivém das Commodities, já tem 32 anos.

As propostas de emprego foram muitas, vindas de todos os grandes jornais, inclusive de televisão, mas fui ficando.

Recentemente me pediram um currículo para a participação em um seminário. Descobri que não tenho um. Seria algo como: Folha 1972 e Folha 2021.​


Mauro Zafalon

Abrimos este espaço nesta semana para reproduzir o artigo de Mauro Zafalon, colunista de Mercado da Folha de S.Paulo, que por falha de edição saiu pela metade na edição especial sobre o centenário do jornal. O arquivo foi corrigido e está disponível na internet.


Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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