Por Luciana Gurgel

Luciana Gurgel

Jacinda Ardern, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, virou uma queridinha global, elogiada pela condução da crise da Covid, pela resposta ao massacre de Christchurch e pela coragem de dar à luz enquanto estava no cargo.

Mas a chamada Jacindamania cobrou seu preço, como cobra de tantas mulheres em posições de destaque: ao anunciar a renúncia, ela disse “não ter mais combustível”.

Ardern não detalhou o que esvaziou o tanque. Houve especulações sobre queda de popularidade e risco de uma derrota eleitoral.

Pode até ser. Mas não se pode ignorar a influência das mídias, tanto a tradicional como as redes sociais.

Segundo a imprensa neozelandesa, ameaças contra ela quase triplicaram em três anos. Pelo menos oito se transformaram em investigações policiais.

Na despedida, Ardern salientou que assédio e abuso não foram fatores determinantes para a decisão. Mas até seu substituto, Chris Hipkins, disse que o abuso foi “abominável”.

Jacinda Ardern não é inexperiente. Em 2001, obteve um bacharelado em Estudos de Comunicação com especialização em política e relações públicas. Foi consultora no gabinete do primeiro-ministro britânico Tony Blair. Seu companheiro, Clarke Gayford, é apresentador de rádio e TV.

Jacinda e o companheiro Clarke Gayford

Um de seus momentos inesquecíveis foi a reação calma quando um terremoto fez tremer a terra no momento em que dava uma entrevista coletiva.

Mas preparo e experiência não foram suficientes para neutralizar o impacto do que ela enfrentou. Além de discurso de ódio e misoginia, Jacinda Ardern tornou-se exemplo dos problemas de representação de mulheres na mídia, anônimas ou famosas.

Em novembro, em encontro bilateral com a primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, um repórter indagou se o motivo da reunião era o fato de as duas serem da mesma idade e terem muito em comum.

Ardern rebateu questionando sobre se a mesma pergunta tinha sido feita quando Barack Obama, então presidente dos EUA, visitou seu colega neozelandês, Jonh Kau. Ambos tinham a mesma idade. Marin arrematou, dizendo que estavam se encontrando porque as duas eram primeiras-ministras.

Por trás da elegância na resposta a perguntas infelizes, as mágoas se acumulam, porque ninguém − da primeira-ministra famosa à jornalista foca diante de um entrevistado importante ou à jovem executiva que discorda de subordinados homens − fica insensível ao constatar que ao quebrar o teto de cristal muitas vezes os cacos voam e ferem.

A cobertura da imprensa sobre a saída de Jacinda Ardern está cheia de sugestões de fraqueza para encarar obstáculos associadas ao fato de ela ser mulher.

Esta semana, a BBC teve que se desculpar pelo título de um artigo sobre a renúncia da primeira-ministra, revelador do sexismo a que mulheres na política, nas corporações, na ciência e no jornalismo ainda são submetidas: “Jacinda Ardern renuncia: as mulheres podem realmente ter tudo?”.

Deveriam poder, mas algumas desistem, e isso não é apenas por abuso nas redes sociais. A mídia tradicional tem seu quinhão de culpa.

Muitos atribuem o olhar sexista da mídia ao predomínio de homens em cargos de chefia nas redações, mas pode ser mais do que isso.

O artigo da BBC foi escrito por uma jornalista, Tessa Wong, mas não se sabe se ela também foi autora do título. De qualquer forma, o contexto era o questionamento sobre a possibilidade de conciliar carreira e família, e veio de uma mulher.

O que levou à renúncia de Jacinda Ardern − ou que pode ter contribuído para ela − e o ângulo pelo qual a decisão foi abordada indica que ainda há um longo caminho a percorrer na representação de mulheres.

Para quem duvida: esta semana, Sanna Marin teve novamente que contornar perguntas sobre impacto de sua idade e sexo no posto de primeira-ministra em pleno Fórum Econômico de Davos.

Depois de longa insistência do jornalista Fareed Zakaria, que tem um programa na CNN e uma coluna no Washington Post, ela declarou: “Em todas as posições em que já estive, meu gênero sempre foi o ponto de partida − o fato de ser uma jovem mulher. Espero que um dia isso não seja um problema, que essa pergunta não seja feita”. Todas esperam.


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