Por Vicente Alessi, filho

Vida profissional é uma surpresa todo dia. Surpresas que, afinal, nos enchem de lembranças, orgulhos e, quem sabe, poucas vergonhas. Somos apenas jornalistas – mesmo que profissionais e diplomados – e sujeitos às três estações todos os dias. A exceção é a primavera: trata-se de estado de espírito. E esse estado de espírito foi a absoluta surpresa que me abateu nos meados dos anos 1970, na Redação da Folha de S. Paulo – quando formávamos um bandinho que desejava ser bons repórteres –, na forma de um Editor com E em caixa alta: André Kallás. Pois descobrimos: o mundo também era feito de copydesks

Em certos círculos mais conservadores da Redação não tinha boa fama o André, pois, diziam, bebia demais. Provavelmente era a reação de quem tivera algum atrito com ele e saiu xingado, no conhecido estilo pavio curto do André: porque pra ele ou era assim ou era frito!, sem outras possibilidades.

Placa que eterniza Aristides Lobo na Redação do Folhão foi jogada fora em reforma recente. Paulo Zocchi a resgatou

Mas nos nossos círculos, da meninada mais novinha, como eu, 25 anos incompletos, André Kallás já era lenda quase bem formada, mercê não ter medo de assuntos controversos, se bem apurados, como o caso dos meninos da Febem abandonados, nus, pela Polícia paulista, na mineira Camanducaia: não fosse ele, quem teria levado a história além da tinta e do papel? Ou os acidentes ocorridos durante a construção da Rodovia dos Imigrantes… E, claro: se bebia deveria ter boas razões, como todos nós. Quem sabe gostasse, como todos nós.

Mas é preciso mostrar o pano de fundo dessa história, o que era o nosso Folhão na ordem das coisas. Naquela época não tínhamos a respeitabilidade reconhecida quando comparado ao maioral, o grande O Estado de S. Paulo. Os dois patrões tinham apoiado a ditadura civil-militar de 1964, o Estadão à frente, pois, afinal, via chegada a sua hora depois de perder batalhas, imaginárias ou não, desde 1922. O Folhão era mais discreto e dispensável por não representar paulistas quatrocentões e apenas a classe comercial surgida da nossa Revolução Industrial.

Pois doutor Júlio Mesquita, logo após vencida a quartelada de 1º de abril e já empossado o general Castello Branco como, digamos, presidente, foi a ele com comitiva paulista, em visita ao Catete. A certa altura tirou papel dobrado do bolso interno do paletó, apesar de portar colete, e disse ao novel mandatário que naquela “folha constavam nomes de paulistas, sugestão para compor seu Ministério”. A resposta do general presidente foi fatal: “Muito obrigado, doutor Júlio. Mas do meu Ministério cuido eu”. E devolveu, com movimento de acinte, a folha de papel ao diretor do jornalão.

Numa sexta-feira de agosto, ano 1975, dia 8: o secretário de Redação Emir Nogueira (de gravata) lê o lide de reportagens produzidas pela editoria Local em busca de chamadas para a capa da FSP. Vicente Alessi Filho e Ivan Pinheiro assistem à troca de ideias. André Kallás é quem coça a têmpora esquerda.

O jornalão foi para a oposição, ganhou censura prévia, passou a publicar Camões. O outro jornal da SA O Estado de S. Paulo defendia-se com receitas que jamais davam certo.

Isso deu ao Estadão um certo ar de respeitabilidade que nenhum Folhão do mundo conseguiria. Pois naquela altura do jogo o Folhão dedicava-se, oficialmente, a tentar fazer um jornal informativo, se fosse possível, obedecendo sem discutir às ordens sombrias da Censura e da Polícia Federal. Extra-oficialmente, emprestava ao DOI-Codi viaturas de serviço para serem utilizadas como cobertura em ações contra jovens que haviam optado por enfrentar a ditadura, principalmente pós-AI-5, por meio de organizações revolucionárias não partidárias.

Isso significa que repórteres da Major Quedinho eram os queridinhos em qualquer evento, e que os da Barão de Limeira faziam só figuração, assim como os da 7 de Abril e os da Almeida Lima (N.daR.: então sedes de, respectivamente, Estadão, Folha, Diários Associados e DCI).

Mas naquela grande Redação que funcionava na Barão de Limeira, 425, em 1975 havia virtudes: os patrões obedeciam à ditadura e não encorajavam nenhum gesto contrário, mas revisores, repórteres, redatores, subeditores, editores, repórteres-fotográficos e o resto da estrutura diretiva viviam processo de solidariedade que eu somente presenciara na cadeia, no Presídio Tiradentes. Sou viúvo dessa solidariedade até hoje: nunca tive tanta emoção, pessoal e profissional, em fazer parte de um coletivo de jornalistas como ali.

Ali, perto de nós, quem mandava eram Dante Matiussi e Renato Sant’Anna, que formavam a, digamos, nova ordem. E brilhavam repórteres que tinham as faces de Carlos Rangel, Dirceu Soares, Marco Antônio Montandon, Mírian Ibañez, Nélio Lima, Paulo Sérgio Markun – depois chegou Getúlio Bittencourt.

E ali reinava, naquele microcosmo da Redação Velha, na qual Aristides Lobo trabalhara por 23 anos, discreto, às vezes invisível, André Kallás. Como um dos subeditores da editoria Local, era o responsável pelos fechamentos das edições de segunda-feira, e de todas as outras na ausência do editor. Não havia tempo feio se fossem 60 colunas ou 16: ele sempre tinha material pra tudo aquilo e sabia, perfeitamente, o que deveria caber em duas páginas: tinha o senso das importâncias sem vacilo. Foi sempre um prazer dividir tantos domingos de plantão com ele.

Ele passava as matérias para os copydesks, que é como se chamavam os redatores de antigamente, já dando forma para seus títulos. Aos sábados, às vezes com 80 colunas pra cobrir com letrinhas, ilustrações e fotos, brigava com alguém da arte para dispor de quatro, cinco diagramadores trabalhando ao mesmo tempo – e André fechava página após página como se estivesse no balcão pedindo mais um gin tônica.

Nunca deu xabu: não tomava furos nem tinha contestadas matérias publicadas. O pessoal da rádio-escuta o adorava porque ele reconhecia suas vitórias em cima da hora do fechamento.

E tinha, ele, virtude determinante para um editor: uma visão gráfica página a página, que se tornava conjunto pulsante: rock para nós, samba-canção para ele, e ao fim cantávamos todos, juntos. Isto envolvia títulos, linhas-finas, legendas, textos-legendas: cada edição deveria contar um dia de nossas próprias histórias.

Perdi André de vista. Espero que esteja bem e a salvo das pragas. Teve a boa vontade e a tolerância de me ensinar os segredos da cozinha de uma Redação e tornei-me melhor profissional por causa disto e dele. Longa e muito boa vida a ele.


Vicente Alessi, filho

A história desta semana é novamente de Vicente Alessi, filho, cofundador e conselheiro da AutoData Editora, que trabalhou na Folha de S.Paulo de setembro de 1974 a abril de 1978.

Nosso estoque do Memórias da Redação continua baixo. Se você tem alguma história de redação interessante para contar mande para [email protected].

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