Por Marco Antonio Zanfra

Esta historinha tem mais a ver com amenidades na vida de um repórter do que com memórias épicas de redação. Mas não deixa de ser, por sua própria localização histórica, digna de lembrança. Principalmente pelo sabor de aveia e melado de cana.

Pois bem. Era repórter da revista Manchete em São Paulo, em 1985, no tempo em que a redação ainda ocupava a suntuosa mansão da esquina da avenida Europa com a rua Groenlândia, nos Jardins. Fiquei ali por menos de seis meses, e, tirando uma matéria séria e profunda sobre suicídio infantil, não fiz nada digno de constar de meu inexistente arquivo pessoal.

Foi nessa época que a Editora Vozes lançou Brasil: nunca mais, um marco na luta contra a ditadura. A obra esmiuçou cerca de 700 processos políticos que, ao rés do chão ou nos subterrâneos do sistema, frequentaram os escaninhos da Justiça Militar e denunciou os abusos até então obnubilados. Prefaciado por dom Paulo Evaristo Arns, o livro trazia “um relato doloroso da repressão e tortura que se abateram sobre o Brasil” entre 1964 e 1979, segundo apresentava a própria editora.

Não me lembro se era para a própria Manchete ou para a Fatos&Fotos, mas o caso é que fui designado a ir conversar com o reverendo presbiteriano Jaime Wright, integrante do projeto Brasil: nunca mais, sobre o lançamento do livro. Wright, morto 14 anos depois, morava com a esposa Alma numa rua tranquila do bairro do Campo Belo, alguns quilômetros abaixo das pistas do aeroporto de Congonhas.

Alma e James Wright em 1990

Claro que o enfoque político da conversa foi marcante, mas minha lembrança mais forte ficou por conta da paz, calma e simpatia do casal. Nunca me senti tão à vontade para falar de um assunto tão sério, e jamais vou me esquecer de um biscoitinho feito com aveia e melado de cana que dona Alma ofereceu ao grupo. Tão macio, saboroso e inesquecível que deixei de lado por instantes minha pauta e pedi-lhe a receita.

Além de um exemplar autografado do livro, saí de lá com a fórmula mágica das bolachinhas, que me arrisquei a fazer uma vez em casa. Não ficou ruim, mas claro que as mãos de dona Alma tinham mais jeito para cumprir a tarefa.

Lembrei-me dessa história há alguns dias, ao deparar-me no armário de casa com uma garrafinha de melado que havia sido comprada havia pelo menos uns dois anos, com a intenção de transformar-se numa nova fornada das “bolachinhas da madame Wright”.

Mas onde diabos foi parar a receita?


Marco Antonio Zanfra

A história desta semana é novamente de Marco Antonio Zanfra, que atuou em diversos veículos na capital paulista e em Santa Catarina. Em Florianópolis, onde reside, trabalhou em O Estado e A Notícia, na assessoria de imprensa do Detran e do Instituto de Planejamento Urbano, além de ter sido diretor de Apoio e Mídias na Secretaria de Comunicação da Prefeitura. É também escritor.

Nosso estoque do Memórias da Redação continua baixo. Se você tem alguma história de redação interessante para contar mande para [email protected].

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