Por José Maria dos Santos (*)

Talvez a evocação pareça provinciana, ingênua até. Mas o fato é que, ao revisitar esta reportagem que fiz de Pelé, e lá se vão 50 anos, veio-me à mente a estátua do Colosso de Rodes, em homenagem ao deus-sol Hélios, na cidade do mesmo na Grécia Antiga, erguida pelo artista Carés de Lindo em 280 a.C. O monumento, em bronze e ferro, incluído entre as sete maravilhas do mundo na Antiguidade, media 33m e veio abaixo por um terremoto. Não é difícil associar a impressionante fotografia de José Bosco, cuja exuberância físico-estética esclarece ser algo que somente poderia ser concedido pelos escalões superiores do Olimpo. Essa reportagem, publicada na revista Manchete, mereceria o Prêmio Esso de Jornalismo, categoria esporte, na sua edição daquele ano.

Desse episódio eu preservo duas lembranças especificas, que desdobrarei a seguir, e a vaidade triunfante de haver estado à sombra de uma entidade mágica chamada Édson Arantes do Nascimento. Por favor: não estou falando de mil gols e nem de multidões que se ajoelharam diante dele, tampouco das glórias que recebeu, de todos os tipos, cores, valores e intensidade. Detenho-me em detalhes pequeninos. O mais significativo deles foi-me relatado por Jorge Arantes. Quem era? Um senhorzinho baixo e ligeiramente gordinho, irmão de Dona Celeste, mãe da entidade, portanto, tio do Rei.

Tio Jorge era funcionário das empresas Pelé, que tinham, e ainda devem ter, sede na Rua Riachuelo, centro da cidade de Santos. Era um dos funcionários da casa e quem o via, diligente na sua mesinha, jamais poderia imaginar que o patrão lhe deve ter feito xixi no colo. Ele me contou que quando o sobrinho construiu uma casa portentosa, como cabia à suas posses e status na região da Ponta da Praia − creio que pelos inícios dos anos 1970 − colocou sua caixa de engraxate, com a qual levava trocados para a mãe na cidade de Bauru, bem à vista na sala principal. Argumentava irrefutavelmente que não queria esquecer de onde tinha vindo.

Detenho-me em outro capítulo prosaico que jamais estaria à altura da realeza que Édson Arantes já era, no carnaval de 1966, para ilustrar seu modo de reinar. Naqueles dias Edson Arantes do Nascimento, aos 25 anos, casou-se com Rose Scholbi do Nascimento, após namoro e noivado à moda antiga. Para namorarem no cinema, por exemplo, Rose entrava sozinha, ocupava uma poltrona pré-selecionada e “guardava” outra, ao lado, para o namorado, que entrava com as luzes já apagadas. Efeito da fama? Da severidade dos pais da menina? Ou de ambas coisas? O rei contou-me apenas os fatos e não deu maiores esclarecimentos.

O que mais poderia ser lembrado da sua majestade? Assim como o Rei Ricardo III (1452-1485) ofereceu seu trono inglês por um cavalo ante a iminência de batalha decisiva para seu poder, Sua Majestade Pelé, numa crise de nostalgia, também ofereceria seu cetro e coroa por um punhado de guabiroba, uma frutinha redonda com jeito de araçá, pródiga nos bosques do interior paulista, que meninos adoram, embora o sabor possa ser questionado. Quem passou a infância por lá sabe perfeitamente do que se trata; basta ter um pouquinho de açúcar e, garantidamente, não ser venenosa para qualquer frutinha virar manjar dos deuses.

A ideia da reportagem nasceu na redação da sucursal de Manchete em São Paulo, na Rua 24 de Maio, centro, numa conversa descontraída entre mim e Henrique Veltman, meu chefe, que alinharia com prazer entre meus três irmãos de sangue. Partimos de duas perguntas básicas: quem é esse rei e porque ele é assim? A resposta estava a 60 km de mim, na cidade de Santos, onde tinha seu oráculo na Vila Belmiro: Júlio Mazzei (1930-2009). Aprendi, nos meus 50 anos de jornalismo, que se um repórter se apaixona por um tema, a fonte é contagiada. Mazzei fez todas as medições necessárias e certamente também contagiou o Rei, porque ele se submeteu docilmente a uns dez dias de marcações e verificações. Tais registros foram feitos no primeiro semestre de 1972 e, cotejados agora com os resultados das Olimpíadas de Munique, realizadas no segundo semestre daquele ano, tomando-se a corrida de 100m rasos como referência − a prova mais nobre dos jogos desde os tempos da Grécia Antiga −, o cenário é amplamente favorável ao nosso Rei. Naqueles jogos, aliás tristemente famosos face o ataque sangrento à delegação israelense, a medalha de ouro foi conquistada pelo russo Valeri Barzov com 10s14; a de prata, pelo americano Robert Taylor, com 10s24 e a de bronze. pelo jamaicano Lennox Miller, com 10s33. Edson Arantes do Nascimento completou seu tempo em 11s, com diferenças essenciais: os olímpicos utilizaram tênis especiais em piso especial, com treinamento idem; o Rei correu com tênis comum, no gramado da Vila Belmiro, sem qualquer treinamento especial, levando-se ainda em conta que o Rei tinha 32 anos contra os verdes 20 anos dos medalhistas.

Reservo as linhas finais para tentar produzir um pequeno furo de reportagem relativo às dúvidas sobre a origem do apelido Pelé, que me foi transmitido pelo mencionado Tio Jorge.

Ele me descreveu que o pai, “Seu” Dondinho, levava o filho Dico para assistir aos jogos de futebol em Bauru. Nesse pequeno universo havia um goleiro de apelido Bilé, ou coisa parecida, que era familiar naqueles confrontos. O menino Dico, naquela idade em que criança tenta dominar sons que ouve e construir palavras, criou uma onomatopeia particular que daria forma ao seu apelido galáctico. Bilé, ou coisa parecida, me veio à mente ao assistir ao gol de número mil de Pelé. Ao ver que a bola havia entrado, Andrada, goleiro do Vasco, socou ferozmente o chão. Ele sabia que, infelizmente, seria lembrado exclusivamente pelo milésimo gol, quaisquer que fossem as outras apresentações magnificas que havia praticado. O pobre Bilé, lá na eternidade, deve estar enfrentando síndrome adversa: porque aquele menininho não pronunciou corretamente meu nome? Ou apelido?


José Maria dos Santos (Foto: Zanoni Fraissat-Folhapress)

(*) José Maria dos Santos ([email protected]) é ex-Diários Associados, Manchete, Abril e Diário do Comércio, de São Paulo, entre outros.

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