Zuenir Ventura, hoje escritor, colunista e membro da Academia Brasileira de Letras, e o filho, Mauro Ventura

Por Mauro Ventura

Um dia meu pai chegou em casa com um menino de 13 anos a tiracolo e nos apresentou: “Aqui está o mais novo membro da família”. Eu e minha irmã ganhávamos ali uma espécie de irmão caçula. Meu pai vinha do Acre, para onde fora cobrir o assassinato do líder seringueiro Chico Mendes. A série de reportagens rendeu-lhe, além de um prêmio, o Esso, um garoto, Genésio, testemunha-chave do crime e que estava marcado para morrer. Foi acolhido por nós como parente, embora nunca tenha se adaptado de fato ao Rio. Afinal, tivera uma infância muito difícil, e vinha de uma terra distante e de uma cultura estranha.

Meu pai diz que cometeu na ocasião uma transgressão contra uma lei básica do jornalismo – a de que, ao reportar os acontecimentos, não se deve interferir neles. Mas nos encheu de orgulho porque a alternativa era bem pior: a morte de Genésio.

Lá em casa, como se vê, a vida profissional e pessoal de meus pais, que se conheceram no jornal Tribuna da Imprensa, sempre estiveram misturadas.

Num ambiente assim, seria natural que eu virasse jornalista. Mas a verdade é que isso nunca me passou pela cabeça – pelo menos não de forma racional. E tampouco meus pais deram força para que isso acontecesse. Talvez porque achassem que eu tivesse uma visão romanceada da profissão. De fato, havia convites para tudo quanto é show, dos Jackson Five aos do primeiro Rock in Rio, passando pelos espetáculos das estrelas da MPB. Havia ainda os momentos marcantes, como os ensaios da peça Gota d’água ou o encontro com a doutora Nise da Silveira, além dos eventos históricos, como as idas ao Galeão para a volta dos exilados. Havia também o contato com as celebridades, como quando apareceram lá em casa Cat Stevens e Rachel Welch, no auge da beleza. Nossa casa na Urca era palco de discussões dos destinos do País. Eu, pequeno, varava as madrugadas sentado na escada, ouvindo fascinado gente como Leon Hirszman, Chico Anysio, Ziraldo, Ferreira Gullar, Paulo Francis, Zelito Viana e Gabeira. E desde cedo estava acostumado a escutar histórias sobre nomes como Darcy Ribeiro, Glauber Rocha, Nelson Rodrigues, Manuel Bandeira, Hélio Pellegrino, Paulo Pontes, Flavio Rangel, Rubem Fonseca, Drummond e Joaquim Pedro de Andrade.

Mas havia o outro lado do glamour, marcado por plantões intermináveis, por jornadas de 12, 14 horas, pelo salário escasso, pela censura, pelo assassinato de amigos como Vladimir Herzog, pela ida deles para fora do País após o golpe de 64, pela prisão dos dois logo após a decretação do AI-5.

Sem apoio em casa e sem nenhum pendor para a escrita, encaminhei-me para a Engenharia, a exemplo de tantos amigos. Levei tempo para criar coragem e largar no último ano, ainda que sem um plano B. Decidi cursar História, depois pensei em fazer Economia, até que, aos 21 anos, resolvi dar uma chance à profissão. Mais por falta de opção do que por interesse genuíno. E logo de cara entendi o fascínio que ela exercia sobre meus pais. E finalmente encontrei o meu lugar. Como me disse um amigo, o jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares, não se pode contrariar os genes.

Curioso que, em mais de 30 anos de magistério, meu pai formou várias gerações de jornalistas, mas, por um desses caprichos do acaso, não foi meu professor. Não importa. Mais determinante do que duas aulas semanais ao longo de quatro anos de faculdade tem sido o exemplo prático cotidiano e a convivência próxima durante esses meus 58 anos de vida e 37 de redação.

São muitos os ensinamentos que carrego comigo, e que extrapolam o jornalismo e a literatura e se espraiam para a vida. Afinal, é uma trajetória marcada pela coerência entre vida profissional e pessoal, pela inquietude, que levou meu pai a passar dez meses visitando a Favela de Vigário Geral; pela generosidade, que faz com que atenda com paciência jovens repórteres em busca de conselhos; pela coragem, que o fez tornar público o bilhete em que  Zuzu Angel denunciava que se aparecesse morta a culpa era dos assassinos de seu filho; pela curiosidade permanente, que o faz estar sempre se renovando; pelo perfil conciliador e pela vocação para a alegria, que não esmoreceu nem durante o cárcere nem por ocasião de um câncer, há 30 anos.

Como se sabe, o jornalismo passou por todo tipo de transformação nesses mais de 60 anos desde que meu pai começou. Mas algumas coisas não mudam e devem ser preservadas. Hoje, quando experimentamos toda forma de retrocessos, é um privilégio esse aprendizado diário ao lado de alguém que não transige com a ética, que escuta e se interessa pelas pessoas anônimas, que respeita os entrevistados, que combate toda forma de autoritarismo, que preza a diversidade, que cultiva a humildade e que reafirma a todo momento os ideais democráticos.


Zuenir pede para acrescentar uma dedicatória que fez para Mauro em seu livro Minhas histórias dos outros: “Querido: meu sonho cada vez mais era ser igual a você, cada vez mais. Mas, como não consigo, me contento em ser um pai coruja”.

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