Há exatamente um ano, em 5 de junho de 2022, o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram assassinados a tiros durante uma viagem à Terra Indígena Vale do Javari, localizada nos municípios de Atalaia do Norte e Guajará, no Amazonas. Um ano depois, o caso segue sem respostas para muitas perguntas.

Dom Phillips estava escrevendo um livro sobre a Amazônia, registrando como a Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) tem lutado para salvá-la. Decidiu ir ao Vale do Javari, em junho do ano passado, ao lado do indigenista Bruno Pereira, funcionário licenciado da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e conhecedor como poucos da região.

Os dois foram assassinados por pescadores ilegais no rio Itaquaí, enquanto voltavam para Atalaia do Norte. Os corpos ficaram desaparecidos por dez dias. O Ministério Público Federal (MPF) denunciou três indivíduos como autores dos homicídios: Amarildo Oliveira, o Pelado; seu irmão Oseney de Oliveira, o Dos Santos; e Jefferson da Silva Lima, o Pelado da Dinha.

A Polícia Federal (PF) indiciou também Ruben Dario da Silva Villar, o Colômbia, apontado como o mandante, e outro pescador ilegal, Jânio Freitas de Souza.

Desde a procura dos corpos até a investigação dos autores e mandantes do crime, o caso foi marcado por omissão e inconsistências, principalmente no que se refere à condução do inquérito.

A PF mudou três vezes os delegados responsáveis pela investigação dos assassinatos, sem avançar na identificação e indiciamento de um mandante. Após passar pelas mãos de Domingos Sávio e Lawrence Cunha, o caso está hoje sob responsabilidade do delegado Francisco Badenes Júnior, que trabalha na apuração do crime de uma sala a quase 2.300 quilômetros de distância de Atalaia do Norte, na Unidade de Repressão a Homicídios, na Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal, no Edifício MultiBrasil Corporate, em Brasília.

“As constantes mudanças na condução das investigações só fizeram aumentar a descrença entre ativistas e indígenas do Vale do Javari sobre o desfecho do trabalho”, comenta a Abraji.

Outro ponto a ser destacado também é a suspeita de ligação da família de Pelado, um dos autores do crime, com Dênis Paiva, prefeito de Atalaia do Norte. Paiva foi flagrado por jornalistas ao visitar as casas de familiares de Pelado, nas comunidades ribeirinhas de São Gabriel e São Rafael. Além disso, parentes do mesmo Pelado tinham cargos na estrutura da administração municipal, segundo revelou reportagem do Programa Tim Lopes, da Abraji.

É importante destacar também que parentes dos assassinos confessos receberam nos últimos dez anos quase R$ 145 mil em seguro defeso, benefício pago ao pescador artesanal a fim de garantir uma renda durante o período em que não puder realizar suas atividades devido à piracema. Amarildo e Jefferson receberam respectivamente R$ 7.184 e R$ 10.932 de seguro defeso. Eles receberam o benefício mesmo sendo investigados pela PF por participação em uma organização criminosa voltada à invasão da Terra Indígena Vale do Javari para a pesca predatória.

Todas essas inconsistências nas investigações levaram os desembargadores da 4ª Turma do TRF-1, em Manaus, a anular o processo. A decisão por unanimidade foi anunciada em maio deste ano.

Continuidade do legado

Se as investigações foram marcadas por omissão e inconsistências, o mesmo não pode ser dito da imprensa nacional e internacional, que ao longo de um ano vem tentando preservar e dar continuidade ao trabalho e legado de Dom e Bruno.

Uma coalização formada por mais de 50 jornalistas em dez países criou o Projeto Bruno e Dom, que tem o objetivo de seguir com o trabalho e o legado dos dois: falar sobre tudo o que está relacionado à Amazônia e denunciar ilegalidades e irregularidades que possam prejudicá-la. A iniciativa é liderada pelo consórcio francês Forbidden Stories, que dá continuidade ao trabalho de jornalistas mortos em decorrência de seus trabalhos.

Fazem parte do Projeto Bruno e Dom Amazônia Real (Brasil), Der Standard (Áustria), Expresso (Portugal), Folha de S.Paulo (Brasil), Le Monde (França), NRC (Holanda), Ojo Público (Peru), Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) (Estados Unidos), Paper Trail Media (Alemanha), Repórter Brasil (Brasil), Tamedia (Suiça), The Bureau of Investigative Journalism (Reino Unido), The Guardian (Reino Unido) e TV Globo (Brasil).

Desde 1º/6, os veículos da coalizão estão publicando o conteúdo que produziram ao longo desse um ano de trabalho, cujos temas estão intimamente relacionados ao trabalho de Dom e Bruno. “Eles foram mortos porque tentaram informar ao mundo sobre os crimes cometidos por aqueles cujas atividades estão perfurando os pulmões do planeta”, explica o Forbidden Stories. Confira o conteúdo publicado pelo projeto aqui.

Veja outras iniciativas que darão continuidade ao trabalho de Dom e Bruno:

  • Estreou em 2/6 o documentário Vale dos Isolados: O Assassinato de Bruno e Dom, no Globoplay. Liderada pela repórter Sônia Bridi, da Globo, a produção mostra os últimos passos de Bruno e Dom, as investigações em torno do caso e o trabalho que eles desenvolveram junto aos povos originários. O filme traz também conteúdo exclusivo, como o momento em que a equipe da Univaja encontra objetos pertencentes aos dois, entre eles o celular de Bruno, que continha as últimas imagens conhecidas dele e de Dom.

 

  • A família e a editora de Dom Phillips anunciaram que o livro que ele estava escrevendo, Como salvar a Amazônia: Pergunte às pessoas que sabem, será concluído e publicado por amigos jornalistas. Dom já tinha feito grande parte da pesquisa e escrito cerca da metade da obra. Os capítulos restantes serão escritos por Eliane Brum, do Sumaúma; Tom Phillips, do The Guardian; Jon Lee Anderson, do The New Yorker; Kátia Brasil, da Amazônia Real; Jonathan Watts, de The Guardian e Sumaúma; e Andrew Fishman, do Intercept Brasil. Outros jornalistas amigos de Dom também participarão. O projeto será supervisionado por uma equipe de amigos e colegas de Dom, incluindo Rebecca Carter, sua agente literária; David Davies, autor; Tom Hennigan, do Irish Times; além dos já citados Jonathan Watts e Andrew Fishman, em colaboração com Margaret Stead, da editora britânica Manilla Press, que publicará o livro.

 

  • E nesta segunda-feira (5/6), às 10h, organizações defensoras da liberdade de imprensa estão organizando uma coletiva de imprensa para debater o caso Dom e Bruno, e refletir sobre a resposta do Estado brasileiro sobre o crime. O evento, realizado no Instituto Vladimir Herzog, em São Paulo, é organizado por Artigo 19, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Instituto Vladimir Herzog (IVH), Instituto Palavra Aberta, Repórteres Sem Fronteiras (RSF), Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca) e Tornavoz. Na coletiva, o Projeto Tim Lopes, da Abraji, lançará um minidocumentário sobre a região amazônica e o trabalho de Bruno Pereira, com imagens de entrevistas realizadas no local. Sérgio Ramalho e Rodrigo Pedroso, da Ojo Público, contarão os bastidores das reportagens realizadas por eles dentro do Projeto Bruno e Dom.

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