Por Luciana Gurgel

Luciana Gurgel

Um episódio com o astro de futebol Gary Lineker, cujo desfecho coincide com os 100 anos da BBC, representa bem um dos maiores desafios da rede que esta semana chega ao centenário: agradar a gregos e troianos no que diz respeito à imparcialidade.

No dia 13, a ECU (Executive Complaints Unit) da corporação julgou procedente uma reclamação contra o âncora do Match of The Day e maior salário da casa por um tuíte de fevereiro sobre a guerra da Ucrânia.

Em resposta ao pedido de Liz Truss, então secretária de Relações Exteriores e atual primeira-ministra, para que as equipes da liga inglesa de futebol boicotassem a final da Liga dos Campeões na Rússia se qualificadas, Lineker tuitou: “E o seu partido [o Conservador] devolverá as doações de russos?”.

Embora admitindo que Lineker não é um jornalista e não trabalha só para a BBC, o comitê deliberou que a tomada de posição sobre “uma questão politico-partidária ou controvérsia política” infringiu as normas de uso de mídias sociais.

Para a ECU, Lineker deveria “ter tido cuidado ao abordar questões de política pública”.

O astro já deu dor-de-cabeça à BBC diversas vezes, tanto por seu alto salário quanto por um certo inconformismo com regras, pois ele se considera fora do alcance dos padrões estabelecidos para o jornalismo.

BBC celebra 100 anos pisando em ovos para se provar imparcial
Gary Lineker

O problema é que a fronteira entre programas de análise esportiva e jornalismo é tênue. E para a BBC não é hora de irritar ainda mais um governo que não quer vê-la continuar igual nos próximos 100 anos, se é que ela continuará existindo, coisa que alguns chegam a duvidar.

Em um século, a corporação que nasceu na era do rádio tornou-se parte da vida dos britânicos e de gente de outros países, com serviços em vários idiomas. Tem um papel vital no soft power, exportando cultura por meio de séries, filmes, documentários e jornalismo premiado.

No site comemorativo do centenário, a frase de abertura é “os 100 anos da ‘nossa’ BBC”.

Mas no governo de Boris Johnson (e agora de Liz Truss) entrou na linha de tiro supostamente por uma necessidade de modernização de sua fonte de receita principal, a taxa cobrada das residências para assistir aos canais, mesmo online.

“Supostamente” porque pode até ser coincidência, mas o questionamento da taxa, resultando em um congelamento do valor que está levando a rede a fazer cortes severos, começou depois das eleições de 2019.

Johnson e sua turma passaram a reclamar abertamente de falta de imparcialidade da BBC na cobertura da campanha eleitoral, narrativa comum entre líderes criticados pela mídia.

Na campanha, o tema principal era o Brexit, que dividiu o país e instalou a polarização em um nível incomum para os britânicos. Concluir a saída do Reino Unido da União Europeia era a bandeira de Johnson, mas as dificuldades para executar a missão eram notícia na imprensa.

Só que a BBC não é qualquer imprensa. Ela é uma rede pública, e aí reside a confusão. Mídia pública não é (ou não deveria ser) mídia subserviente ao governo de plantão.

O Partido Conservador iniciou então uma cruzada para desmontar o poder da BBC, o que alguns consideram pura vingança e outros uma tentativa de neutralizar sua influência sobre a sociedade.

A taxa, hoje de £159, foi congelada por dois anos e no que depender do Conservador vai acabar, virando uma cobrança semelhante à das plataformas de streaming.

O algoz da corporação não foi Boris Johnson, que espertamente, como de hábito, escalou sua então secretária Nacional de Cultura e Mídia, Nadine Dorries, como portadora das más notícias.

Nesse tiroteio, a BBC vem tentando dar os anéis para não perder os dedos, buscando estabelecer limites para as manifestações de jornalistas e de estrelas do elenco.

Foi o caso de Lineker, que talvez em outra época não tivesse sido apontado pela casa como culpado do crime de expressar sua opinião de forma desafiadora para o governo.

Não é só. O jornalismo parece mais “cuidadoso”, no mau sentido, passando ao largo de questões polêmicas destacadas em outras mídias.

A BBC chega aos 100 anos com uma penca de problemas. Sua audiência envelheceu e muitos jovens não assistem TV, insensíveis aos programas que a rede criou para eles.

O congelamento da taxa é a ponta do iceberg na questão do financiamento. Já há uma queda em pagantes, porque muitos não assistem TV ou não assistem à BBC.

E se nem a Neftlix está conseguindo navegar em um ecossistema de streaming com vários competidores e pouco dinheiro nos bolsos, a BBC bem pode naufragar se depender somente disso.

Nos últimos meses, a emissora perdeu talentos para outros veículos, alguns alegando desconforto com a política restritiva para manifestação de opiniões pessoais.

O melhor presente de aniversário para a BBC seria algo que ela veio perdendo: a invulnerabilidade em relação a governos ou partidos, que até a era Johnson podiam até reclamar um pouco, mas não ousavam cortar suas asas.


Para receber as notícias de MediaTalks em sua caixa postal ou se deixou de receber nossos comunicados, envie-nos um e-mail para incluir ou reativar seu endereço.

0 0 votes
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments