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quinta-feira, abril 25, 2024

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Parlamentar e agência de RP pisam na bola e mancham as respectivas reputações

* Por Luciana Gurgel, especial para o J&Cia

Luciana Gurgel

A sempre delicada questão do risco de conflito de interesses relacionado a quem exerce função pública causou controvérsia no Reino Unido nos últimos dias. No centro da história está a parlamentar Ruth Davidson, do Partido Conservador da Escócia.

Política respeitada, que defende causas sociais e se notabilizou como a primeira lésbica a assumir a liderança de um partido político no país, ela anunciou semana passada a decisão de assumir um cargo de consultora em uma agência de comunicação especializada em lobby, sem deixar o mandato. A arriscada ideia não durou uma semana. Ela teve que voltar atrás nessa terça-feira (29/10), sucumbindo à pressão externa e também dentro do Parlamento escocês.

Esse é um tema sensível aqui, sobretudo depois de um escândalo em 1994 envolvendo parlamentares que teriam recebido dinheiro de um empresário para fazer perguntas de seu interesse em sessões do Parlamento inglês, em Londres. O caso gerou um movimento para regulamentar o lobby no país. Algumas regras foram adotadas em uma lei em 2015, mas sem o rigor de outros países.

A história do segundo emprego de Ruth Davidson é surpreendente em vários aspectos. A começar por envolver uma agência de comunicação que tem como um de seus servicos o gerenciamento de crises. Os fatos associados à contratação eram suficientes para se suspeitar de que haveria reação contrária, mas isso não parece ter sido previsto.

A agência chama-se Tulchan, e tem como um dos sócios Andrew Feldman, ex-Chairman do próprio Partido Conservador. A parlamentar iria receber um salário expressivo: 50 mil libras por 24 dias de trabalho por ano (já que no restante dos dias úteis ela deveria cumprir expediente no Parlamento de Edimburgo).

Em perspectiva: a remuneração anual de um membro da Câmara dos Comuns no Reino Unido é de 79,5 mil libras (mais auxílios como correio, estafe do gabinete, viagens e moradia). Ela ganharia na agência mais de 60% da remuneração de um ano por tão pouco tempo de trabalho, levando à desconfiança de que a função englobaria também serviços como encontros, reuniões e aconselhamento sem que ela precisasse estar na sede da empresa em Londres.

A posição de Davidson ficou ainda mais frágil porque em agosto ela havia renunciado à liderança do Partido Conservador Escocês, sob o argumento de que precisaria dedicar mais tempo à família (teve um bebê ano passado). A contradição agravou-se ao surgir a informação de que poucos dias antes de a contratação ser anunciada ela registrara uma empresa de consultoria em seu nome. Prato cheio para os adversários da ideia inferirem que estava tudo planejado.

Uma das principais vozes a se levantar contra a ida de uma parlamentar em pleno mandato para uma agência de comunicação foi a PRCA (Associação de Relações Públicas e Comunicação), que reúne as principais empresas do setor no país. A decisão foi classificada como “desgraça” e “totalmente antiética”.

A Tulchan ignorou, já que não faz parte dos quadros da entidade e não é signatária do código de conduta. Mas a PRCA soltou uma nota congratulando Ruth Davidson por ter mudado de ideia tão logo ela voltou atrás – um belo tapa de luva de pelica.

Para tornar o caso mais intrincado, não seria a única atividade paralela da parlamentar. Ela trabalhou como jornalista no início da carreira, e mantém uma coluna semanal no jornal Scottish Mail. Recentemente entrou para o conselho consultivo sobre saúde mental da ITV. Haja tempo para tanto trabalho extra, ainda mais com bebê pequeno em casa.

Pode soar estranho um parlamentar fazer parte da folha de pagamento de uma organização de mídia. Mas é uma situação tolerada por aqui, apesar de críticas veladas. O mais conhecido exemplo é o de Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, que antes de entrar para a política era jornalista. Até assumir o atual posto, e mesmo durante a campanha para ocupar o lugar de Theresa May, ele  escrevia uma coluna semanal remunerada no The Daily Telegraph, interrompida enquanto integrou o gabinete da ex-primeira-ministra. Recebia £ 275 mil por ano, uma bela remuneração para um texto semanal de 1,1 mil palavras.

Os que mantém essa prática garantem a independência. Mas é notório que o Daily Telegraph adota uma posição aberta pró-Governo. Suas manchetes favoráveis ao Brexit quase poderiam fazer parte de um manifesto do Partido, de tão alinhadas ao pensamento de Johnson.

O episódio de Ruth Davidson, no entanto, é mais complexo. A função de consultora de uma agência de especializada em lobby e aconselhamento de clientes interessados em informações ou decisões do Governo ou Parlamento ao mesmo tempo em que exerce mandato na casa é de uma vulnerabilidade enorme. Muito além da manifestação de uma opinião nas páginas de um jornal.

Mesmo com o plano abandonado, o estrago para a reputação de Ruth Davidson e para a própria Tulchan está feito. Não foi um movimento seguro para uma agência de Relações Públicas e nem para quem quer construir uma carreira no ramo da comunicação, no qual a credibilidade é tão necessária.

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