Por Plínio Vicente da Silva

Quando cheguei ao Jornal da Cidade, de Jundiaí, em 1970, era ainda um foca no impresso, embora já com alguns anos de rádio. Por não saber sobre os costumes que imperavam nas redações, claro que não consegui me livrar do tradicional batismo, ritual que, inclusive, eu desconhecia. Entretanto, não posso negar que o que fizeram comigo foi o bê-á-bá de um aprendizado o qual, sem falsa modéstia, continuo perseguindo até hoje já na reta final desta minha longa jornada.

Pois bem. Fui levado para o impresso pelo saudoso Ademir Fernandes. Depois, ele e o também saudoso Sandro Vaia foram verdadeiramente meus primeiros mestres, os quais, embora eu tenha concluído apenas o ensino primário de um grupo escolar, portanto sem nível acadêmico, me formaram em jornalismo. Contratado pelo JC como redator de Esportes, começava a cumprir minhas tarefas a partir das duas da tarde, quando chegava para começar a fechar as duas páginas da editoria. Num sábado – o jornal não funcionava aos domingos −, Ademir me pediu para que na segunda-feira levasse um quilo de bodoni como presente para os colegas. Nunca ouvira falar e ele me explicou: era um produto que poderia comprar em qualquer padaria da cidade.

E assim fiz. Passei na tradicional Pauliceia, da rua Barão de Jundiaí, fui recebido por Arlete, que estagiava à noite no jornal como aprendiz de diagramação – anos depois se casou com José Aparecido da Silva, o Zequinha Neto (ambos já falecidos), que me sucedeu como correspondente do Estadão em Roraima – e quando fiz o pedido ela riu: “Batismo de foca”. Me contou o que estava acontecendo e me explicou que bodoni era uma das fontes da tipologia usada pela gráfica do JC. Como eu nunca fui de dar o braço a torcer, perguntei-lhe se havia algo com um nome parecido com bodoni.

Então, quando cheguei à redação estava todo mundo reunido. Os sorrisos jocosos foram substituídos por ares de exclamação e uma festa geral assim que coloquei a sacola sobre a minha mesa, abri e expliquei:

− Não tinha bodoni, então trouxe um quilo de torrone.

Quando, em novembro de 1979, cheguei à redação do Estadão como subeditor de Política − sob a chefia de outro dos meus grandes mestres, Eduardo Martins −, passei a ligar o alerta diariamente. Embora já com 37 anos e relativamente experiente como jornalista – chegara a editor-chefe do diário jundiaiense –, sabia que a qualquer hora, inevitavelmente, seria a minha vez de ser batizado. Por isso, passava o tempo imaginando qual seria a sacanagem de que seria vítima.

O tempo passou e nada. Pouco mais de três meses depois fui transferido para a Chefia de Reportagem e mais algum tempo já dividia o cargo com Moacyr Castro. E nada de batismo. Todavia, não perdi por esperar: ele veio. No meio da uma certa tarde, enquanto um temporal castigava a cidade, e sem repórter para escalar – todos já estavam na rua –, resolvi eu mesmo ir cobrir os estragos na favela da Vila Guilherme. Pedi um fotógrafo à produção e o único disponível era Domício Pinheiro, sobre quem escreverei qualquer hora dessas para contar um fato curioso sobre essa mesma reportagem, uma das minhas muitas memórias da redação.

Também precisaria de transporte e então perguntei a um dos subeditores da Geral como pedir um carro. Simples, disse-me ele: bastava ir à sala do editor-chefe, Miguel Jorge, explicar o que queria à secretária Elvira Palumbo − que me revelou ser também irmã do chefe do Tráfego, José Claudio Palumbo − e pedir uma autorização. Enquanto me preparava para seguir sua orientação, nos minutos seguintes esse meu colega – eram três os membros gangue dos sacaneadores que havia na Redação, cujos nomes não revelo por absoluta falta de provas − ele certamente ligou para a secretária e combinaram a tramoia.

José Cláudio Palumbo

Quando lá cheguei, não notei o sorriso irônico nos lábios de Elvira, mesmo porque estava com pressa. Ela rapidamente rabiscou algumas linhas numa folha de um bloco de notas, me entregou e lá fui eu para a sala do Tráfego. Quando entrei não havia nenhum motorista, apenas Palumbo. Disse-lhe do que precisava e lhe entreguei o bilhete. Ele leu e começou a rir. Não, ele não era irmão de Elvira Leão Palumbo, que mais tarde se formou em Direito, prestou concurso para a magistratura e se tornou juíza.

Entretanto, consegui o carro, fui à Vila Guilherme, eu e Domício fizemos a reportagem, voltei, a escrevi e entreguei-a ao editor, nessa época Francisco Antônio Augusti, o Fran, de saudosa memória. Pouco depois chegou uma foto mostrando a cabeça de uma boneca enterrada na lama, um flagrante sensacional, que será assunto de uma próxima crônica. Claro que havia sorrisos – também maliciosos – na boca na maioria dos meus colegas que já sabiam da sacanagem, mas eu me mantive firme, impoluto, disposto a não ceder. Afinal, não era a primeira vez que havia sido batizado. Só que agora não mais como um foca em busca de um quilo de bodoni.

Lamentavelmente, há alguns dias recebi com muita tristeza a notícia da morte de José Claudio de Carvalho Palumbo, de quem me tornei amigo. E com quem ainda viveria outro episódio provocado pela tríade de sacaneadores do sexto andar. Naquela época – anos da década de 1980 – era praxe na Redação se fazer diariamente, por volta das 17h30, uma reunião dos editores, incluindo o chefe de Reportagem. Nela se definiam as chamadas de primeira página.

Nesse tempo eu ainda conseguia andar distâncias curtas sem o uso da bengala. Numa dessas ocasiões, enquanto estava no Mesão discutindo alguns assuntos com a chefia – Luciano Ornelas era o secretário – alguém levou o bastão que eu guardava sob a mesa. Quando voltei, notei que ele havia sumido e comecei a procurá-lo. Venâncio, um dos contínuos – e também meu ponta-direita no time da Redação do qual eu era técnico −, percebeu minha aflição e não se conteve. Contou-me o que havia ocorrido: mandaram-no levar a bengala à sala do Tráfego e pedir para que ficasse guardada lá até alguém ir busca-la. Implorei para que ele fosse, pois estava quase na hora da reunião. Quando voltou Palumbo veio junto, com a bengala na mão. Constrangido, pediu-me desculpas e disse que ficou surpreso por encontrar meu apoio na sua sala e que há muitos minutos estava querendo saber de quem era.

Gargalhadas cercaram minha mesa e eu não tive como me segurar: também me debulhei em risos, até desbragado, como diz na linguagem caipira. Talvez tenha sio esse meu comportamento que me fez passar a ser respeitado, querido e, confesso com orgulho, até mesmo admirado por meus colegas, pois lhes mostrei que nada daquilo me ofendia. Afinal, vivíamos os tempos em que o politicamente correto, que hoje regra impiedosamente o comportamento obrigatório que todos devem a todos quando no mergulho de questões diversas, era tratamento dispensável. Chamado de aleijadinho quando criança e depois passando por várias denominações ao longo da vida, minha deficiência me faz hoje, na terceira idade, uma pessoa com necessidades especiais. E ninguém mais tem coragem de brincar com ela. É politicamente incorreto, impensável naqueles anos de ouro do Estadão.

Contei todas essas histórias e estórias, casos e causos usando-os como acervo para prestar minha homenagem, sentida e amargurada, a um amigo querido, respeitoso e solidário que conquistei no passado distante e que acabo de perder. Não por muito tempo, pois um dia qualquer desse meu pequeno futuro certamente nos encontraremos na Redação do jornal do Céu. Em meio às minhas lágrimas, rogo a Deus que proteja, per omnia secula seculorum, amém, a alma de José Claudio de Carvalho Palumbo. Ou simplesmente Palumbo, o chefe do Tráfego do Estadão. Dele guardo doída saudade e a singeleza que sempre encontrei em seu coração simples, despojado, mas grandiosamente generoso.


Plínio Vicente da Silva

A história desta semana é novamente de Plínio Vicente da Silva, uma homenagem a José Cláudio de Carvalho Palumbo, que morreu em 2/10, aos 81 anos. Palumbo trabalhou por 26 anos no jornal O Estado de S. Paulo, onde entrou como revisor, atuou na editoria de Economia e depois assumiu a Chefia do setor de Tráfego, função na qual se aposentou.

Nosso estoque do Memórias da Redação está muito baixo. Se você tem alguma história de redação interessante para contar mande para [email protected].

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