Por Luiz Roberto de Souza Queiroz

Manhã tranquila na redação do Estadão, o telefone toca, o recado é breve: “Bebeto, vem pra cá; trouxeram uns candirus de Santarém e o peixe é vampiro mesmo, o estômago está cheio de sangue; não é lenda, não”.

O telefonema era do João Luiz Cardoso, diretor do Hospital Vital Brasil do Instituto Butantã, e com ele, no laboratório apertado, comprovei que a crendice dos índios, que não deixam mulher nadar pelada no rio Amazonas – tem que pôr calcinha -, tinha razão de ser.

A lenda é que o candiru, Vandella cirhosa, bagre minúsculo, comprido e fininho, entra na vagina das mulheres menstruadas para se alimentar do sangue e é impossível arrancá-lo depois que abre as espinhudas barbatanas laterais.

Candiru

Histórias do candiru eram muitas entre os índios, todo mundo tinha ouvido. Só na década de 1980, porém, quando um amigo arrancou uns candirus de um cavalo morto que descia de bubuia pelo rio e mandou num vidro com álcool para o Butantã, foi possível ter certeza de que o peixinho se alimenta mesmo de sangue.

Tempos depois, acho que em 1997, médicos de um hospital de Belém comprovaram a outra parte da lenda, ao retirar trabalhosamente e aos pedaços os restos de um candiru que morreu e apodrecia dentro da uretra de um pescador, cujo pilau consta que nunca mais funcionou.

O Butantã – onde naquele então ninguém sonhava que um dia teria que fazer vacina para a Covid – era o paraíso para o foquinha “repórter bichologista”, como me chamavam na redação.

Taturana assassina

Quando seringueiros do Pará começaram a sofrer e mesmo morrer de uma síndrome hemorrágica causada por uma lagarta do gênero Saturnidae, lá fui eu para o Butantã buscar a explicação científica.

Antes mesmo da entrevista, um entomólogo me deu luvas de borracha, uma tesourinha e uma caixa cheia de taturanas e disse que explicaria enquanto eu fosse depilando as lagartas, cortando os pelos urticantes, pois não havia tempo a perder. A ideia era macerar os pelos com a toxina, misturar o “suco de taturana” com água e injetar nos pobres cavalos do Butantã.

O processo, o mesmo usado para fazer soro antiofídico. Um nadinha de toxina é injetado, o organismo do cavalo reage, produz anticorpos, depois se injeta um pouco mais, mais ainda outra semana, até que o cavalo fica apto a neutralizar grandes quantidades de toxina. O animal é sangrado, o soro, separado e vira remédio para o humano que for picado por cobra – ou, no caso, queimado pela taturana.

Lagarta (Foto: Eduardo Cesar)

Acabei me encantando com as taturanas – “bichos sanfonados”, como as batizou a Táta – que, quando não matavam, acabavam se transformando em lindas borboletas, que ajudei a criar no Butantã. O problema é que na Amazônia o inseto comia folha de seringueira, mas aqui teve que mudar o cardápio, folha de nêspera… e não gostava muito.

A “taturana assassina”, segundo os jornais, revelou-se inócua no Sudeste. O Butantã recebeu alguns casos de queimaduras vindos do interior paulista, mas fora da Amazônia a toxina não provocava hemorragia. O contato com o bicho queimava, mas só isso – até hoje não se sabe o porquê.

Formiga frita

De outra feita me chamaram ao Butantã porque um sauveiro nos jardins do Instituto “garrou a sortá içá em penca”, na explicação da faxineira mineira do hospital. Ela contou para os médicos que, na roça, fritava a bundinha da içá, “prá mode cumê cu farinha”, e eu tinha curiosidade sobre o “caviar brasileiro”, como Monteiro Lobato chamava o içá torrado, prato comum no seu Vale do Paraíba.

O fato é que uma vez por ano sai do sauveiro a revoada de içás e de bitus. O bitu, saúva macho, é mero objeto sexual, serve para cobrir as içás e morre depois de transar. A içá, porém, tem o abdômen em formato de bola, qual miniatura de jaboticaba, cheia de ovos e guarda o sêmen recebido que por anos vai fertilizando os ovos que formarão uma legião de formigas.

O pitéu era tão procurado que no tempo de Anchieta os paulistas eram chamados de “comedores de formiga”, pois – é ele quem conta – na época da içá os índios largavam o trabalho e, igaçaba na mão, iam caçá-las.

Pois o doutor João Luiz convenceu a faxineira mineira a fritar as bundinhas das içás que os funcionários – eu entre eles – trabalhosamente separávamos da cabeça do inseto com tesoura cirúrgica.

Içá

Não posso dizer que gostei do resultado, porém, o “caviar” do Lobato era muito gorduroso. Afinal, ovo de galinha ou de formiga é rico em colesterol e cada bundinha de içá estourava na boca liberando a pasta de ovinhos microscópicos que, talvez por falta de tempero no hospital, que só tinha soro antiofídico, ficou muito sem graça.

O Butantã deu outras histórias, que nem renderam reportagem, como quando acompanhei inoculação de veneno de aranha armadeira em ratos, que reagiam com intenso priapismo – isto é, uma ereção de dar inveja até ao Casanova. O tal veneno só não acabou resultando num antecedente do Viagra porque, embora durasse até quatro horas, a ereção provocada era extremamente dolorosa, como afirmava um dos meus amigos cientistas que, desconfio, testou o efeito da toxina na sua própria “ferramenta”.

O priapismo interessou tanto que levantamos a história de um batalhão da Legião Estrangeira que fez uma festa, no Norte da África, com as rãs que a população local caçava nos brejos. O que não se sabia é que as rãs tinham comido cantárida (Lytta vesicatoria), um besourinho cuja ingestão também provoca priapismo.

A história não deu reportagem, afinal o Estadão da época era pudico demais para falar em ereção, mas fez sucesso a história que levei ao ar na Rádio Eldorado, falando do susto dos médicos franceses ao entrarem no hospital de campanha do deserto e encontrarem todos os soldados de “bandeira” levantada, como se fosse em continência.

Mas essas são histórias do passado. A última vez que precisei do Butantã encontrei o dr. João Luiz semiaposentado, cuidando dos efeitos de uma epidemia de queimaduras de água-viva em Ubatuba. Fez questão de me explicar que era lenda que o remédio é urinar em cima da queimadura, o melhor é usar vinagre, que, entre outras vantagens, vem numa embalagem melhor do que a urina. Crendice, disse ele, e já avançado tecnologicamente, pediu que lhe mandasse foto do estranho caroço epidérmico que crescia no meu peito e que estava dando um baile nos dermatologistas de São Paulo.

Mal recebeu a foto, diagnosticou: “É berne, que você pegou no meio do mato”. E explicou que, muito safada, a mosca do berne bota os ovos nas costas de outra e esta, por sua vez, deposita os ovos da outra na pele da vítima desinfeliz – que, no caso, era eu.

Expliquei que no meu tempo berne se curava “ponhando toicinho na ferida” e lá veio a explicação científica: “O tratamento não mudou; a feridinha é o orifício que a larva do berne abre na pele para poder respirar”. Quando você tapa essa abertura com toucinho, a larva se desespera, sobe para dentro do toicinho em busca de ar e você fica livre do parasita. Hoje, porém, não se mata berne como antigamente, explicou, é mais prático colocar um esparadrapo bem apertado em cima, esperar um tempo, a larva sobe em busca de ar, fica grudada… e você está vingado.

E não é que deu certo? Nada como se consultar com um “bichologista” mais sabido que eu.


Luiz Roberto de Souza Queiroz

A história desta semana é novamente de Luiz Roberto de Souza Queiroz, o Bebeto, assíduo colaborador deste espaço, que esteve por muitos anos no Estadão e hoje atua em sua própria empresa de comunicação.

Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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