Por Álvaro Bufarah (*)

Num país onde a liberdade de imprensa é esculpida como cláusula pétrea da democracia, o microfone da mídia pública norte-americana balança sobre um tripé enferrujado. E balança com força. A recente escalada de tensões entre o governo federal e os sistemas de rádio e televisão públicas dos Estados Unidos acendeu o alerta: o que antes era uma disputa política, agora ameaça virar um apagão informativo em vastas regiões do país.

O estopim mais recente foi uma ordem executiva emitida pelo presidente Donald Trump, que visa a interromper o financiamento da Corporation for Public Broadcasting (CPB) – entidade que repassa recursos federais às emissoras públicas, incluindo os gigantes NPR (National Public Radio) e PBS (Public Broadcasting Service). A medida, ainda em disputa judicial, foi encarada por profissionais do setor como um golpe direto no coração de um sistema que depende fortemente da articulação nacional para sobreviver.

Em reação à decisão, líderes de rádios locais expressaram profunda preocupação. A presidência da Nashville Public Radio, uma emissora comunitária do Tennessee, emitiu um comunicado aos seus apoiadores denunciando o risco iminente de colapso do sistema de mídia pública dos EUA. A crítica, embora pontual, ecoa uma inquietação coletiva: sem o apoio da CPB, centenas de emissoras podem fechar as portas, principalmente aquelas localizadas em regiões rurais, onde já se vive o que especialistas denominam “desertos de notícias” − áreas inteiras sem cobertura jornalística ativa.

Atualmente, segundo dados do próprio CPB, cerca de 1.500 estações públicas em todo o país recebem algum tipo de suporte financeiro, técnico ou de conteúdo da instituição. O corte previsto, mesmo que represente apenas cerca de 5% do orçamento de algumas emissoras, tem efeito dominó: o subsídio cobre custos estruturais essenciais, como o recebimento de programação via satélite, pagamento de direitos autorais musicais e a manutenção das taxas de afiliação com a NPR − responsável por programas emblemáticos como Morning Edition e All Things Considered (CPB, 2024).

Mas a crise não é apenas financeira. Há um pano de fundo político que preocupa. A tentativa do presidente de destituir membros do conselho da CPB sem respaldo legislativo foi barrada judicialmente, mas expôs o grau de intervenção sobre um sistema historicamente construído para ser independente do governo de turno. A NPR chegou a ser expulsa de seus escritórios no Pentágono, restringindo o acesso a fontes e informações estratégicas. Para muitos, trata-se de uma estratégia deliberada de esvaziamento institucional.

O mais preocupante, talvez, seja o impacto direto sobre os ouvintes. Em estados como Kentucky, Montana, Alasca e Alabama, muitas cidades e vilarejos só recebem sinal de rádio pública. É por meio dessas emissoras que moradores têm acesso a informações locais, reportagens investigativas e alertas de emergência − muitas vezes em áreas desprovidas de jornais impressos ou cobertura digital consistente. A University of North Carolina, em estudo publicado em 2022, apontou que mais de 2.500 jornais locais fecharam suas portas nas últimas duas décadas, criando um vácuo que a radiodifusão pública ainda tenta preencher.

Enquanto isso, o financiamento privado segue limitado. Embora a maioria das rádios públicas dependa majoritariamente de contribuições de membros e ouvintes − modelo que garante alguma independência editorial −, essas doações não cobrem as despesas de infraestrutura, muito menos os custos crescentes de inovação tecnológica e produção de conteúdo multimídia.

A inquietação não é apenas americana. Na França, a Radio France enfrentou cortes de pessoal em 2023. No Reino Unido, a BBC viu seu orçamento reduzido em meio a embates com o governo conservador. No Brasil, rádios educativas e universitárias também vivem sob a ameaça do desmonte, especialmente após a extinção do Ministério da Cultura em anos anteriores. A pergunta que se impõe globalmente é: quem vai financiar o que não gera lucro, mas informa com isenção?

A batalha travada pela mídia pública dos Estados Unidos é um espelho para o mundo. Quando a informação deixa de ser um direito e passa a ser uma mercadoria, a democracia perde sua bússola. Em tempos de desinformação viral, de deepfakes e de polarização, o trabalho de uma imprensa confiável, acessível e plural nunca foi tão urgente. Mas se o transmissor for desligado, não haverá quem escute.


Fontes consultadas:

Corporation for Public Broadcasting. Annual Financial Report 2024. Disponível em: https://www.cpb.org

Pew Research Center. State of the News Media 2024. Acesso em: https://www.pewresearch.org

University of North Carolina. The Expanding News Desert Report, 2022. Disponível em: https://www.usnewsdeserts.com

NPR Public Editor. NPR’s Expulsion from Pentagon Space Raises Concerns. Acesso em: https://www.npr.org

New York Times. Trump Moves Against Public Broadcasting Board, 2025. Disponível em: https://www.nytimes.com

Álvaro Bufarah

Você pode ler e ouvir este e outros conteúdos na íntegra no RadioFrequencia, um blog que teve início como uma coluna semanal na newsletter Jornalistas&Cia para tratar sobre temas da rádio e mídia sonora. As entrevistas também podem ser ouvidas em formato de podcast neste link.

(*) Jornalista e professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e do Mackenzie, pesquisador do tema, integra um grupo criado pela Intercom com outros cem professores de várias universidades e regiões do País. Ao longo da carreira, dedicou quase duas décadas ao rádio, em emissoras como CBN, EBC e Globo.

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