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segunda-feira, julho 14, 2025

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Memórias da redação ? O amestrador de rola-bosta

Plínio Vicente, ex-Estadão, hoje atuando no Jornal de Roraima, volta a colaborar com este espaço com uma história que se passa no monte Roraima, hoje muito comentado em função da telenovela Império, da Rede Globo. Ele diz, porém, que a realidade do monte nada tem a ver com o que a novela mostra. O amestrador de rola-bosta O Cotingo herda o Uailan, de curta distância entre seu nascedouro no monte Roraima e as fraldas da cadeia de montanhas do maciço das Guianas, e desce cortando o lavrado em busca do Surumu, já em terras de Pacaraima. Lar da cruviana, vento alísio de Nordeste que varre a região no inverno do hemisfério norte, a vasta savana abriga centenas de comunidades indígenas e algumas famílias mestiçadas. Umas com pai branco e mãe índia, outras originadas da união de índio com branca, consequência do surgimento de sítios e fazendas que foram sendo implantados ao longo dos últimos dois séculos. Foi ali, nas proximidades do Santo Antônio do Pão, que nasceu Erenildo, o Nildinho, filho de Erenuê e Zenildo. Sempre foi menino esperto, que se destacou da ruma de irmãos pela inventividade, seu jeito moleque de fazer as coisas. Construía seus próprios brinquedos, sabia plantar, capinar e roçar como gente grande e desde pequeno já bodocava passarinho na floresta e flechava peixe nas correntezas, remansos e poços do Maú. Para orgulho do pai, paraense tocador de sítio arrendado no pé da serra que divide Brasil, Venezuela e Guiana, e para desespero da mãe macuxi, roceira de mãos calejadas e tez curtida pelo sol na labuta diária, incansável na busca de uma vida melhor e segura para os oito filhos nascidos todos naquele fim de mundo. A família sempre se deu bem com os índios da serra. Trocavam mercadorias, se valiam das mezinhas e pajelanças, visitavam-se constantemente e com o tempo meninos e meninas foram incorporando, de cada lado, aos seus costumes, os hábitos da outra raça. Areruia, parixara e damurida passaram a ser música, dança e comida na casa cabocla; nas malocas tornaram-se comuns os jogos de bola, o boi bumbá e as pastorinhas. Foi nessa convivência que Nildinho aprendeu um oficio no mínimo inusitado na região norte de Roraima. A terra indígena Raposa/Serra do Sol sempre atraiu um grande número de pessoas de fora do Estado, que passaram a visitar a serra por vários motivos, principalmente por causa do processo de demarcação. A maioria, por dever de ofício, andava por lá para conhecer em seu habitat os índios que ficariam famosos no Brasil e no mundo como personagens de um controvertido e arrastado processo levado a julgamento no Supremo Tribunal Federal. Por sinal, a decisão do STF, que mandou tirar todos os brancos dessa área, não valeu para Nildo e Erenuê. Queridos por todas as etnias indígenas, não houve quem convencesse os nativos a cumprir a decisão da Corte Suprema do País. Nem Funai, Polícia Federal, Ministério Público, ninguém. Assim, Nildinho continuou brincando com seus amigos e meio parentes ingaricós, macuxis, patamonas, taurepangues e uapixanas. Com a chegada das monções, ali pelos meados de abril, na primeira estiagem ele ia à aldeia onde morava Aiuruê, seu melhor amigo. A diversão da hora era perambular pelas pastagens atrás de besouros rola-bosta (Dichotomiusschiffleri), bicho enorme, negro, disputando para ver quem encontrava o maior deles, que pode chegar a mais de 15 centímetros. Dependendo da sorte, podiam terminar a caçada com um monte deles. Assim, Nildinho passou a ter em casa, numa caixa de papelão, no meio do esterco de boi, um monte de besouros. Não demorou e os insetos passaram a ser seus bichinhos de estimação e o menino pôde então exercitar o ofício de amestrador de rola-bosta. E depois de muita insistência e paciência, fazê-lo puxar carrocinhas que construía com caixas de fósforos. Demorava, mas conseguia. A vida desse besouro não dura muito. Seu papel na natureza é cavar um buraco, enrolar esterco em bolas que leva para dentro do ninho onde a fêmea vai depositar os ovos. Aliás, seu último ato em vida é fecundar a fêmea, que o mata em seguida e leva seu corpo para alimentar a ninhada. Assim, com o passar do tempo, o inseto começa a se incomodar com a prisão. O instinto é sempre o de fugir, ir atrás de esterco e cumprir o seu papel de macho e de futuro pai. Certo dia, voltando de uma pescaria, Nildinho e Aiuruê encontraram nas praias do Maú alguns cascos de filhotes de tartaruga da Amazônia (Podocnemis expansa), certamente devorados por trinca-ferros e outros predadores ao tentarem vencer dramaticamente a distância entre o ninho e a calha do rio. Foi quando Nildinho deixou vazar sua criatividade ao bater-lhe a ideia de fazer o besouro arrastar o casco como se fosse uma tartaruga fantasma, um zumbi. Então, sua maior diversão passou a ser a treinar alguns rola-bostas para fazê-los andar com o casco nas costas. Uma tarde, enquanto brincava, chegaram visitantes da cidade e um deles ficou impressionado com aquilo. Perguntou a Nildinho como o casco se movia sem ter uma tartaruguinha dentro? “É um casco encantado, mágica de índio”, inventou. “Me vende?”. “Vendo”. “Quanto custa?”. Nildinho olhou para o sujeito e viu que o lucro seria fácil: “Dez reais”. Recebeu o dinheiro e entregou o casco, tomando o cuidado de não revelar o segredo. “Para andar tem que fazer o quê?”, perguntou-lhe o ingênuo comprador. “Diga só painikon três vezes (em macuxi quer dizer vamos). Só isso”. Algumas horas depois o comprador voltou com o pequeno casco na mão e reclamou com Nildinho: “Não tem encanto nenhum. Painikon, painikon, painikon e o bicho não anda. Tome de volta e me devolva dinheiro”. O menino deu um sorriso, foi no quintal, pegou um rola-bosta, escondeu-o sob o casco de tartaruguinha e o fez andar. O sujeito não se conteve e tanto insistiu que ele acabou lhe contando o segredo: “Ah, então é isso! Pois me venda também o besouro”. Nildinho foi curto e grosso: “Vendo, mas são cem reais”. O turista quis saber por que o inseto custava tanto: “Doutor, não é fácil treinar um rola-bosta. Dá um trabalho danado…”.

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