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quinta-feira, abril 25, 2024

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Davizão, de goleiro de times de várzea a médico infectologista premiado

Por Moacir Assunção

Uma das histórias mais marcantes que vivi no jornalismo ocorreu com um motorista de reportagem. Desculpem, leitores, não me recordo do nome dele. A memória, depois dos 50 anos, começa a ficar falha, mas acho que, na maior parte dos casos, o milagre é mais interessante do que o nome do santo. Pois bem, estava no Estadão, no início da década de 2000, atuando na editoria de Geral, sob a liderança da grande Ruth Bellinghini, na Chefia de Reportagem, e com o Pedro Autran, como editor. Autran é sobrinho do grande ator Paulo Autran. Um dia, tive que fazer uma entrevista com o infectologista David Uip, um dos maiores médicos da área no País, ali na Escola de Medicina da USP, na avenida Doutor Arnaldo, Zona Oeste de São Paulo.

Era um fim de tarde e tinha uma entrevista marcada com ele. No caminho, conversando com o motorista, ele me perguntou o que ia fazer na Secretaria. Até onde me lembro, iria conversar com o David Uip, um dos mais importantes médicos infectologistas brasileiros, sobre Aids e as tentativas de enfrentar essa terrível doença. Disse isso para o motorista, falei que ele podia me deixar lá, que pediria um carro para voltar à redação.

Para minha surpresa, ele perguntou se podia me acompanhar na entrevista porque gostaria de dar um abraço no amigo dele, o David Uip, que chamou de “Davizão”. Eu, com aquela ingenuidade típica da classe média que acredita até em mamadeira de piroca (ao menos a parte bolsonarista dessa classe social), perguntei que história era aquela. Disse que não havia problema algum nele me acompanhar, mas não havia entendido aquela história do “Davizão”.

Ele me explicou, então, que sempre morou na Casa Verde, bairro da Zona Norte de São Paulo, e, na juventude, gostava muito de jogar futebol nos vários campos de várzea que havia ao lado de rios e córregos da região. Disse até que era um craque, quase um Maradona da Casa Verde. Mas o grande diferencial do seu time era um goleiro alto para os padrões da época, com mais de 1,86 m, que pegava muito bem sob as traves; era como Lev Yashin, o grande goleiro soviético, mais conhecido como Aranha Negra, que parou os melhores atacantes do mundo, com sua roupa toda preta e 1,89 m de altura. Esse “Davizão”, assegurou ele, era o David Uip jovem, morador da Casa Verde, e apreciador do nobre esporte bretão.

Achei a história bem esquisita e imaginei até que ele estava mentindo. Decerto bateu aquela questão, carregada de preconceito, na minha mente: “Como um simples motorista vai conhecer o melhor infectologista do Brasil?”. De qualquer forma, decidi tirar a história a limpo. Cheguei, me anunciei e, depois de uma breve espera, comecei a fazer a entrevista com o Uip. Ao terminar, antes de me despedir, pedi licença para fazer uma pergunta pessoal a ele. Contei a história do motorista e perguntei se ele a confirmava. Para minha surpresa, o “Davizão” confirmou tudo, disse que morou na Casa Verde quando jovem, jogava futebol e, em razão da altura, era goleiro dos times de várzea. David Uip, com seu rosto grande e anguloso, é um homem muito inteligente e um verdadeiro gentleman no tratamento.

Perguntei se poderia pedir para o motorista subir ao gabinete dele. Sem pestanejar, o médico, um dos mais premiados infectologistas do País, pediu que eu avisasse ao colega motorista e o convidasse a nos juntar a nós. Este, visivelmente emocionado, entrou na sala do David Uip e o abraçou, sendo correspondido pelo médico, também muito feliz por encontrar um velho amigo. Ambos ficaram mais alguns minutos, ao meu lado, conversando e relembrando velhas histórias de amigos que ambos conheciam, em uma palestra franca e agradável.

 Em seguida, voltei com o motorista para a Redação, não muito distante da Casa Verde, onde os dois amigos fizeram história no futebol de várzea. Aliás, esclareço que essa denominação tem a ver com a primeira partida de futebol no Brasil, disputada entre os times da São Paulo Railway (SPR) e Companhia de Gás (atual Comgás) na Várzea do Carmo, atual Parque d. Pedro II, Centro de São Paulo, no distante ano de 1895. No caminho, vim pensando como esse mundo é engraçado. Um goleiro de time varzeano chegou a médico infectologista e, um dia, teve a oportunidade que, decerto, não esperava, de rever um velho amigo, que participava da mesma atividade, mas havia se tornado motorista de reportagem. Como diria aquele cantor sertanejo: “Èta mundo véio sem porteira!”. Em um perfil publicado na revista IstoÉ, em que é retratado como uma celebridade, descubro que Uip, que dirigiu o Centro de Convergência contra o coronavírus na capital paulista, mantém o hábito de jogar futebol como um aplicado meio-campista, agora não mais como goleiro, no Esporte Clube Pinheiros, agremiação de elite da cidade.


Moacir Assunção

A história desta semana é de um estreante neste espaço: Moacir Assunção, jornalista e historiador, autor ou coautor de 12 livros, dois deles, Os homens que mataram o facínora e São Paulo deve ser destruída (ambos pela Record), finalistas do Prêmio Jabuti. Com passagens por Estadão, Diário Popular e Jornal de Brasília, também é professor do curso de Jornalismo da Universidade São Judas, em São Paulo.


Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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