Não foi uma condenação qualquer. Ao determinar que os jornalistas Octávio Costa e Tábata Viapiana paguem R$ 150 mil de indenização ao ministro decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, corrigidos monetariamente desde a publicação da reportagem Negócio Suspeito, na revista IstoÉ em 2017, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) abre um preocupante precedente na história da liberdade de imprensa no País, não só pela decisão em si, mas por tudo que a cerca.
Importante ressaltar que o recurso foi impetrado por Gilmar Mendes ao STJ em maio de 2021, após perder na primeira e na segunda instâncias. Na ocasião, o ministro Villas Bôas Cueva, relator do caso no STJ, rejeitou a apelação em uma decisão monocrática. No entanto, quase quatro anos depois, sem nenhum fato novo, o mesmo Cueva mudou de entendimento e afirmou que a matéria está “permeada de ironias e insinuações” contra o ministro, defendendo a condenação da revista e dos jornalistas, no que foi seguido por outros quatro magistrados.
Ao atingir o presidente da ABI, uma das mais importantes e respeitadas instituições do País, a decisão do STJ atinge frontalmente a própria liberdade de imprensa, já que praticamente passa um recado aos jornalistas e à sociedade de que os membros da corte suprema são intocáveis e podem se voltar contra qualquer profissional que, cumprindo o seu ofício, escreva sobre eles, independentemente do motivo. No caso em questão, a partir de reportagem amplamente documentada, como entenderam as instâncias inferiores.

Ironia do destino, Octavio trabalhou por quase um ano no STJ, primeiro como assessor do ministro Edson Vidigal e, depois, chefe da Assessoria de Comunicação, em 2004.
Chama a atenção o valor arbitrado, de R$ 150 mil, com correção monetária e juros moratórios a contar da data da publicação da matéria, podendo superar os R$ 300 mil, o que é excessivo e desproporcional. No caso de Octavio, atinge um profissional de 75 anos, que tem como única fonte de receita a aposentadoria pelo INSS, e que hoje se dedica única e exclusivamente a presidir a ABI, trabalho voluntário e não remunerado. E, no caso da repórter Tábata Viapiana, trata-se de uma profissional que vive do seu trabalho em uma assessoria de comunicação em Curitiba. Ou seja, nem em sonho os dois terão como pagar o que Gilmar quer receber.
Vale também lembrar que a Editora Três foi condenada no mesmo processo, mas que, como massa falida, não será atingida pela decisão.
A este J&Cia, Octavio informou que entrará com embargo no STJ tão logo seja publicado o acórdão com a íntegra da decisão. E que, em não tendo sucesso, apelará ao próprio STF, de Gilmar Mendes, esperançoso de que os demais magistrados da Suprema Corte, defensores intransigentes da liberdade de imprensa, revejam essa decisão absurda, que tantos riscos traz para a democracia e para as liberdades constitucionais, vindos do ministro decano do STF.
Para entender o caso

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu na noite de segunda-feira (9/6) condenar a Editora Três e os jornalistas Octávio Costa e Tabata Viapiana por danos morais ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Em 2017, Octávio e Tabata assinaram uma reportagem na revista IstoÉ sobre a venda, em 2013, de uma universidade da família do magistrado para o governo do Mato Grosso por R$ 7,7 milhões.
A matéria em questão, intitulada Negócio Suspeito, abordava uma investigação de improbidade administrativa relacionada ao processo de estatização da universidade, de Diamantino, no Mato Grosso. A instituição foi fundada por Mendes e a irmã, que permaneceu sendo uma das proprietárias até a venda investigada.
Em seu voto pela condenação dos jornalistas, o relator Ricardo Villas Bôas Cueva declarou que a reportagem está “permeada de ironias e insinuações que se voltam nitidamente contra Gilmar, sendo nítido o intuito de associá-lo, de forma pejorativa, à imagem de alguém que se distancia da ética e que visa apenas resguardar benefícios pessoais e favorecer pessoas próximas”. Acompanharam o relator os colegas Humberto Martins, Daniela Teixeira, Moura Ribeiro e Nancy Andrighi.
Mendes havia sofrido derrotas judiciais relacionadas ao caso, em primeira e segunda instâncias, no Distrito Federal, mas conseguiu reverter agora a situação no STJ. Antes da votação, entidades defensoras da liberdade de imprensa haviam alertado para o perigo da decisão sobre o caso, que poderia abrir um precedente de censura judicial contra jornalistas que atuam sem má-fé e em prol do interesse público. O processo também levanta discussões sobre o uso do sistema de Justiça por figuras públicas para intimidar repórteres e veículos de comunicação.
A origem de tudo

A origem de tudo foi a compra, em 2013, pelo então governador de Mato Grosso, Silval Barbosa (MDB), da faculdade União de Ensino Superior de Diamantino (Uned), que pertencia a Maria Conceição Mendes França, irmã de Gilmar, por R$ 7,7 milhões. Ele transformou a instituição num dos campi da Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat), no município de Diamantino, cidade natal do ministro.
Em 2017, conforme informou o jornal Gazeta do Povo, do Paraná, “a IstoÉ teve acesso a investigação do MP sobre a negociação e publicou a matéria Negócio suspeito. A defesa do decano do STF acionou a justiça por considerar que a revista ‘se prestou a tecer uma série de impropérios, com a clara intenção de desabonar a honra e a imagem do Autor e de minar sua credibilidade’”.
Ressalta a Gazeta do Povo: “Gilmar perdeu na primeira e na segunda instância. O juízo de primeiro grau considerou o pedido improcedente e condenou o ministro ao pagamento das despesas processuais e de honorários advocatícios, fixados em 10% do valor da causa. Gilmar apelou, mas a Quinta Turma Cível, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), rejeitou o recurso por unanimidade. Para o TJDFT, a matéria jornalística foi publicada ‘nos limites do direito à livre expressão das atividades de comunicação, assegurado nos artigos 5º, inciso IX, e 220 da Constituição Federal, em que inexistiu ato ilícito por parte do suposto ofensor, não enseja a reparação civil por dano moral’. Os embargos de declaração de Gilmar, uma espécie de recurso após a decisão, também foram negados. Em um recurso especial, a defesa do ministro argumentou que o tom utilizado pelos jornalistas na matéria continha ‘maliciosa insinuação’ para ‘induzir’ seus leitores a acreditarem que Gilmar ‘exerceria suas atribuições como magistrado em desacordo com a legislação e a Constituição, flertando com ilicitudes das mais repugnantes’. Em maio de 2021, o recurso foi analisado pelo ministro Villas Bôas Cueva, relator do caso no STJ, que rejeitou a apelação do decano do Supremo em uma decisão monocrática. Em fevereiro deste ano, a defesa de Gilmar apresentou um agravo e o relator reconsiderou e levou o caso para análise da Terceira Turma.”
Entidades apontam “precedente de censura judicial” contra jornalistas
A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) destacou a preocupação com a liberdade de imprensa diante da possibilidade de condenação dos jornalistas, apontando para o risco da criação de um “precedente de censura judicial contra jornalistas que atuam sem má-fé e em prol do interesse público”.
“O processo também levanta discussões sobre o uso do sistema de Justiça por figuras públicas para intimidar repórteres e veículos de comunicação”, apontou a Fenaj. A Coalizão em Defesa do Jornalismo (CDJor) reforçou que “as decisões de primeira e segunda instâncias julgaram a ação improcedente, destacando a veracidade das informações publicadas e a legitimidade das críticas jornalísticas”.
A CDJor fez um apelo aos integrantes da 3ª Turma do STJ para que siguissem o “já consolidado entendimento do STF de que críticas dirigidas a autoridades públicas podem ser fortes e ácidas sem que isso gere o dever de indenizar”.
O caso Rubens Valente

Esse processo de Gilmar Mendes contra jornalista não foi o primeiro. São vários os que ele abriu contra profissionais.
Um dos mais emblemáticos foi contra o repórter Rubens Valente, que, condenado a pagar uma indenização da ordem de R$ 400 mil ao magistrado, em última instância, decidiu recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em processo acolhido contra o Estado brasileiro. O relatório de admissibilidade é de março de 2025. Valente, representado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), alega que foi condenado a pagar uma indenização a um ministro do STF [Gilmar Mendes] após publicar um livro criticando sua atuação num caso sobre corrupção. Valente também afirma que o Poder Judiciário brasileiro teria determinado a inclusão da condenação em edições futuras do livro.
O caso seguirá para exame de mérito quando a CIDH, após alegações das partes, decidirá se o Brasil violou os direitos humanos da vítima à honra, à liberdade de expressão e à propriedade.
No caso de uma derrota final, Octavio Costa tenderá a seguir o mesmo caminho de Valente.