Por Luciana Gurgel
O manjado “a culpa é da imprensa”, empregado para imputar ao mensageiro o ônus pelas más notícias, define a situação da BBC na dupla crise que assola o Reino Unido.
Poucas vezes monarquia e governo foram abalados ao mesmo tempo por crises de imagem como as que vinham fermentando e escalaram na semana passada.
A família real “cancelou” o encrencado Andrew depois da confirmação de que ele vai responder a um processo de agressão sexual nos EUA, recolhendo títulos honoríficos e cargos militares.
A popularidade do primeiro-ministro Boris Johnson despencou ao seu menor nível devido ao escândalo das festas regadas a vinho no lockdown, o Partygate, com direito a adega na sala de imprensa.
Na luta pela sobrevivência no cargo, ele colocou em marcha uma operação resgate de confiança, com um pacote de medidas vistas como populistas.
A primeira saiu domingo, pelo Twitter de Nadine Dorries, secretária Nacional de Cultura: o congelamento por dois anos da taxa obrigatória paga pelas residências do país para assistir à BBC. E o fim da taxa em 2027.
O debate sobre o financiamento da “Auntie Beeb” é antigo. Muitos acham que a emissora deve se lançar ao mercado a fim de reduzir sua dependência da taxa, até porque a geração streaming pouco vê TV e a fonte tende a secar.
Entretanto, o momento de anunciar a decisão e o tom raivoso de Dorries no Parlamento alimentam a tese de vendetta contra o noticiário desfavorável.
A licença anual custa159 libras e passaria para 167 libras. A diferença de 8 libras representa £ 2 bilhões a menos no orçamento da rede em seis anos, mas não quebraria nenhuma família.
Ainda assim a secretária vendeu a decisão como defesa de lares castigados com a inflação. E atacou os opositores por ignorarem o povo − mais populista impossível.
Ela chegou a provocar risos quando afirmou que o governo não quer destruir a BBC, já que na campanha política de 2019 Boris Johnson declarou guerra à emissora e ameaçou o corte de verbas.
O debate da imparcialidade
O curioso é que os dois lados do espectro político recriminam a corporação por favorecer o grupo oposto. Nos debates acalorados em torno do Brexit, esse sentimento se intensificou.
Em sua fala no Parlamento, a secretária chegou a dizer que “a corporação precisa abordar questões em torno da imparcialidade e do pensamento em grupo”, indicando que o corte não é só em nome do povo.
A revisão da taxa poderia ser anunciada até abril. Antecipar a notícia para o momento em que a rede (assim como todas as demais) cobre extensivamente o Partygate e o governo precisa agradar não parece coincidência.
O motivo sugere mais uma confusão entre jornalismo de serviço público e jornalismo estatal.
A impressão que se tem é de que a administração de Boris Johnson gostaria que a BBC seguisse o modelo de estatais obedientes como a russa RT ou a chinesa CGTN, financiadas e subordinadas editorialmente ao Estado.
É difícil imaginar que a BBC possa acabar. Mas terá que mudar, talvez sacrificando produções educativas pouco lucrativas, jornalismo local e cobertura internacional que muitas vezes funciona como única mídia confiável em regimes autoritários.
Sem apoio da monarquia
Reações a esses riscos vieram de vários lados − de celebridades a associações de jornalistas.
No entanto, não vieram nem virão da monarquia. A BBC também caiu em desgraça entre os membros da realeza, desconfortáveis com a cobertura de suas crises.
A gota d’água foi um documentário exibido em novembro sobre a relação dos membros da chamada “Firma” com a mídia.
Em represália, o tradicional programa de Natal da família real foi tirado da BBC e oferecido à ITV.
No ano em que Elizabeth II celebra o 70º aniversário de seu reinado e aumentam os questionamentos sobre se alguém deve substituí-la após a morte, o que reduziria a importância da realeza, fantasma parecido assombra a BBC.
O preço do bom jornalismo pode acabar sendo o “encolhimento” de um reinado que faz 100 anos em 2022, tendo atravessado crises e uma guerra mundial, mas que periga ver-se esvaziado em uma era de intolerância e polarização.
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