Colhido por Betty Vidigal em 2005, depoimento integra a série Onde você ficou quando o Muro caiu? Uma entrevista inédita com Rodolfo Konder, falecido recentemente, feita e gravada em 2005 por Betty Vidigal, será publicada na próxima edição de O Escritor, da UBE – União Brasileira dos Escritores, no final do mês. Joaquim Maria Botelho, presidente da UBE, é também o editor da publicação. O depoimento é parte de uma série de entrevistas, todas em resposta à mesma questão: Onde você ficou quando o Muro caiu?, em alusão à queda do Muro de Berlim, que mudou os rumos do socialismo no mundo. Editada em forma de depoimento do próprio Konder, a entrevista mostra de forma sucinta sua trajetória e as razões de rejeitar, em determinado momento da vida, o comunismo que abraçara desde a juventude. Revela, por exemplo que se tornou comunista no útero da mãe, sob a influência devastadora do pai, mas que só se ligou ao PCB quando entrou para a Petrobras, no começo dos anos 1960, tornando-se dirigente sindical: “Como nos ensinava Heráclito, aquele misterioso cidadão que viveu na Grécia Antiga, não podemos ver as coisas senão como um rio em transformação” “Os únicos valores nos quais acredito são a Democracia e a Liberdade” Sobre a queda do Muro, afirmou não ter sido surpresa, pois quem não era tão sectário já antevia o fracasso da experiência soviética: “Mas o que veio à tona foi pior do que eu imaginava. Stalin foi responsável por mais mortes que Hitler”. Num trecho, um mea-culpa: “O PCB era uma organização moderada, contrária à violência, mas dócil em relação à União Soviética. Alguns amigos meus, como meu querido irmão Leandro Konder, ficam horrorizados com o meu reacionarismo atual. Acham que só o ‘socialismo real’ fracassou, mas não conheço o irreal. Em toda parte a experiência socialista fracassou. Fico chateado comigo mesmo por ter defendido isso durante anos. E paguei um preço alto: fui duas vezes exilado, fui preso, torturado”. Noutro, duras críticas a Cuba e à Coreia do Norte: “Fidel Castro era um dos meus heróis. Muitos amigos meus não têm coragem de criticar, quando as evidências mostram que Fidel se tornou um patético ditador que manda fuzilar jovens! Não há liberdade, não se pode criticar nem sair daquela porcaria. A Coreia do Norte é outra ditadurazinha socialista nojenta, onde o poder passa de pai para filho”. Ceticismo com as esquerdas: “Depois do AI-5, em dezembro de 1968, eu estava muito visado no Rio. Fugi para São Paulo. Aceitei um convite para trabalhar na revista Realidade e retomei minha militância. Mas, quando o Afeganistão foi ocupado pelas tropas soviéticas, escrevi um artigo violentíssimo contra a invasão e novamente a direção do partido veio em cima de mim. Dessa vez fui oficialmente punido. Eu era membro do Comitê de Imprensa e fui rebaixado a quadro de base, veja que coisa ridícula. É o espírito militar que essas organizações de esquerda têm. Como eu conheço as entranhas da esquerda, não tenho mais ilusões”. No depoimento a Betty Vidigal, Konder lembrou ainda que o comunismo era um sonho, mas o caminho para chegar a ele tinha de passar pelas definições leninistas: “A primeira etapa é a ditadura do proletariado. Pergunto: em algum lugar o ser humano foi capaz de ir além disso? Não. Ficaram nesta etapa, porque ninguém abre mão do poder. Principalmente um poder ditatorial. Essas coisas do Zé Dirceu, isso foi em função do poder: ‘se dinheiro é poder no capitalismo, vamos arrecadar dinheiro’. Ele é um Comissário do Povo. Conheci vários. Querem ficar trinta anos no poder. O projeto era esse, claro. Abandonaram a ética para garantir o poder, como Fidel. Um sujeito que manda fuzilar quatro jovens, sem processo, porque queriam sair de Cuba, é um filho da puta. As pessoas precisam ter coragem de dizer isso”. Ao assumir que também ele, Konder, foi um Comissário do Povo, salientou ser isso apenas uma metáfora, pois disse nunca ter acreditado que os fins justificam os meios: “Nunca acreditei que pudéssemos chegar a um regime ético abandonando a ética. Por isso, nunca tive um poder maior, tive cargos de direção intermediária. Fui o primeiro-secretário: recrutava pessoas, recolhia dinheiro. E não era ‘caixa dois’. Marcava reuniões, determinava a pauta”. Sobre o sindicato e a Petrobras: “Eu era responsável pela estrutura à qual pertencia. Por exemplo, na Petrobras, eu era da direção do sindicato. Depois, entre os jornalistas, também. O Vlado Herzog entrou no PCB por meu intermédio, ele me pediu, queria entrar. Uma das coisas que aquele episódio me mostrou foi que não sou herói. Escrevi um artigo na Playboy, anos atrás, que começava dizendo: “A vida me ensinou duas coisas que parecem banais mas me custaram muito caro: Papai Noel não existe e homem chora”. Um homem desiludido: “Hoje não sou mais guru de ninguém, sou uma pessoa desiludida. Os únicos valores nos quais acredito são a Democracia e a Liberdade. Não fiquei um velho ranheta, mas vejo que os jovens vivem aprisionados no agora, não investigam o passado. O dia a dia é o que interessa. Vão ter que encontrar um caminho, novos sonhos, porque se não encontrarem podemos estar caminhando para um novo holocausto”. Sobre Lula, Bush e Hitler: “No Brasil temos um mau exemplo, porque Lula se orgulha de ter chegado à Presidência da República sem estudar. Ele não tem o hábito da leitura. Vê-se pelas reflexões rasteiras, toscas. Vou entrevistá-lo para a TV Cultura, e a primeira pergunta que pretendo fazer é sobre o sentido da História. Vou obrigá-lo a expor sua indigência. Como George Bush. Já consultei o Pinotti sobre ser um caso raro de anencefalia em que o bebê sobreviveu e chegou à idade adulta. Hitler também era uma criatura tosca, sem preparo. Por que chegou ao poder? Porque a grande Alemanha de Beethoven e Thomas Mann tinha se desumanizado. Bertold Brecht, judeu comunista e alemão, definiu com muita sensibilidade o que aconteceu na Alemanha: ‘Muito antes de as bombas caírem sobre nossas cidades,/ caminhávamos nas ruas que ainda existiam,/ mas já vivíamos mergulhados na insensatez’”. Konder lembrou que, “nessa guerra, morreram 25 milhões de pessoas, na maioria esmagadora homens. As mulheres tiveram que assumir as funções deles, senão seus países entrariam em colapso. No mundo inteiro houve uma mudança radical no papel da mulher. Dialeticamente, esse foi o lado positivo da guerra, mas não a justifica”. Ao final ressaltou: “Tivemos ao longo da História fases mais criativas, mas tivemos grandes civilizações que desapareceram. A nossa não está imune a esse perigo. O que está aí parece sólido, mas ‘tudo que é sólido se desmancha no ar’. Visitei as ruínas de Teitchuacán, no México, de uma cultura fantástica da qual não resta nada, visitei as ruínas dos Maias, também uma cultura maravilhosa. O que ficou dos Astecas não é nada; dos Incas, no Peru, também. O continente africano está naufragando. Estamos numa fase de desumanização, violência cada dia maior, destruição do meio ambiente, narcotráfico, lideranças incompetentes. Os problemas se agravam, as desigualdades aumentam. Mas ainda acredito em uma saída”. E encerrou com uma indagação: “Somos capazes de encontrar novas utopias, que mobilizem os seres humanos? Só tenho dúvidas, mas acredito na possibilidade de que o pessoal jovem encontre as respostas”.
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