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terça-feira, abril 30, 2024

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Encontros e desencontros

Bill

Por Márcio ABC

Em 1987, quando Dino Magnoni me resgatou e me levou para Bauru, e Eduardo Nasralla acreditou nele e me contratou, o Diário de Bauru ficava na rua Azarias Leite, em frente à polícia, ao lado da Câmara, vizinho do Pão de Queijo (na esquina com a Rodrigues Alves), a meia quadra da Pizzaria Vila Rica, a umas três quadras do Molina (onde comíamos aquele poderoso marmitex), e bem perto de bares subindo a rua, descendo, bares para qualquer lado que você fosse. O prédio do jornal era mal ajambrado, o estacionamento ficava no meio de dois blocos antigos, sendo à direita, como quem subisse até a Bandeirantes, o administrativo, o comercial e, acreditem, as instalações quentes e abafadas da linotipo. Já a redação (com Carlos Torrente, Erlinton Goulart, Heliana De Souza DeWeese, João Willian Ranazzi, Maria America Ferreira, e depois ainda com o Japonês, o Aceituno Junior e o Eder Azevedo) e aqueles banheiros velhos (que a Dona Ana Camargo odiava limpar) ocupavam umas salas à esquerda, como quem descesse na direção da Rodrigues.

Numa dessas salas ficava o Milton Bill Oliveira, o Bill e sua enorme prancha de diagramação, o Bill e seu enorme talento. Foi lá que o conheci. Eu entrava na sala à tardezinha para ver quantas laudas seriam necessárias para encher a página (cálculo em paicas, claro).

Um dia, saí para cobrir um acidente. Um caminhão de bebidas havia tombado na área urbana, atrapalhando o trânsito. Apenas isso. Ninguém ferido. Só as garrafas de cerveja esparramadas no meio da rua. “Caiu o anúncio”, me disse o Bill. “Você vai ter que escrever sete laudas”. Se não me engano, traduzindo para os padrões atuais, isso dá mais ou menos dez ou onze mil caracteres.

Ficamos amigos, depois eu saí de Bauru, voltei dois anos mais tarde, acabamos nos tornando ainda mais íntimos, viajávamos juntos, bebíamos juntos. Fizemos vários projetos juntos, o Bill sempre com suas ideias diferentonas!, às vezes tão sonhador!, às vezes tão amargurado por não poder levá-las adiante em razão da quadradice alheia!

Hoje (24/7), quando João Pedro Feza e Gilmar Dias me avisaram sobre a morte dele, em vez de rememorar todos os trabalhos e todos os encontros de uma época em que os encontros, apesar dos desencontros, pareciam ser uma coisa mais simples, em vez disso, uma pergunta badalou aqui dentro: como a gente pode se afastar de amigos tão queridos? O Bill e eu fomos amigos de verdade, e mesmo assim talvez eu não o visse há mais de uma década.

Foi essa coisa obscura e dolorosa que se alojou em mim. Um desejo de estar mais triste pela morte dele do que pelo sentido impiedoso desse raciocínio, um sentimento de dívida com o Bill, de quem me afastei há mais de vinte anos e com quem não trocava palavra fazia dez anos ou mais. A dívida por não poder me sentir tão desolado, pois há tempos não tínhamos mais qualquer relação. Nem mesmo o recorte feliz de uma noite em que um amigo fotógrafo (que agora também me escapa à memória) registrou nossa amizade num dos bares da vida eu tenho mais. Tomando emprestado um versinho de Adoniran: Bill, eu perdi o seu retrato.

Nesta sexta-feira angustiante, vou diagramar este resto de dia com um copo, uma bebida e uma sincera saudade que não tem mais conserto, Bill.

Márcio ABC

A história desta semana é de Márcio ABC, ex-Diário de Bauru, O Imparcial, TV Globo/TV TEM e Rede Bom Dia de Jornais, entre outros, escritor, que hoje atua em comunicação corporativa.


Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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