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terça-feira, abril 30, 2024

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Memórias da redação ? Um violino muda a vida de jovens da periferia

Esta é uma colaboração de Moacir Assunção ([email protected]), que teve passagens pelos jornais O Estado de S.Paulo, Diário Popular e Jornal de Brasília e hoje é professor do curso de Comunicação Social da Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo. Também é autor de nove livros, um dos quais, Os homens que mataram o facínora (Record, 2007), foi finalista do Prêmio Jabuti. Um violino muda a vida de jovens da periferia Há coisas no jornalismo que fazem a gente chegar à conclusão de que, apesar dos perrengues do dia a dia, das dificuldades financeiras, da falta do diploma, do enorme número de picaretas que infestam a profissão, dos PMs e manifestantes que agridem jornalistas, e de tantos outros problemas, ainda vale a pena ser jornalista e exercer esse ofício que o grande Gabriel Garcia Márquez um dia chamou de “a melhor profissão do mundo”. Algumas matérias que fazemos demonstram que podemos, concretamente, mudar para melhor a vida de outras pessoas e isso, naturalmente, vale muito mais que todos esses prêmios para jornalistas que pululam por aí. Na verdade, creio que vale mais do que todos eles juntos. Pois é, um dia, “ganhei” um desses prêmios, não foi um Esso, o mais prestigiado do jornalismo nacional, mas valeu tanto quanto um. Em meados de setembro de 2003, um amigo, então assessor de imprensa da Secretaria Municipal de Guarulhos, Gil Campos, me ligou perguntando se interessava para o caderno de Geral/Cidades do Estadão, em que trabalhava na época, uma curiosa história de garotos da extrema periferia da cidade, mais especificamente do Bairro dos Pimentas, que estavam aprendendo a tocar… violino em uma escola municipal. Achei a história fantástica e consultei a então editora, Márcia Glogovski, e a chefe de Reportagem, Célia Curto, que também gostaram da ideia. Fui, então, atrás dos personagens e descobri muito mais do que imaginava. Os meninos tinham perfil de garotos pobres da periferia: pais simples, a grande maioria motoristas de ônibus e empregadas domésticas, vivendo em casas com pouco ou nenhum luxo, em bairros em que se ouvia música de péssima qualidade o tempo todo nos novos aparelhos eletrônicos dos vizinhos, a todo volume, e nos carros que passavam pela rua, ensurdecendo e enlouquecendo seus motoristas. No entanto, estavam extasiados com um brinquedinho novo que passaram a apreciar na escola, nas aulas de música: violinos chineses, que lhes permitiam conhecer um novo mundo. Em vez de pagode e axé, com todos os cantores ridículos impostos pela tevê, que os vizinhos se viam forçados a admirar, os garotos queriam conhecer a vida de gênios como Chopin, Beethoven, Bach, Mozart e Villa-Lobos. Em vez da violência e dos roncos de carros e motos típicos desses bairros pobres, faziam questão de ouvir o som de orquestras e cameratas de cordas. Não à toa, esse interesse incomum naquela realidade mudou a história dos alunos de música. Passaram a conviver mais entre si, pesquisando tudo o que encontrassem de música clássica na internet e nos livros, e se organizando para assistir a apresentações de orquestras em lugares como o Teatro Municipal e a Sala São Paulo. Era um mundo novo e fascinante que se abria para eles. Havia somente um problema: a escola, também simples como seus alunos, só dispunha de dois violinos, usados nas aulas. Nos fins de semana, os garotos não podiam estudar seu instrumento preferido, já que dos 102 alunos, somente dois, cujas famílias fizeram muito esforço para comprar, eram donos de seus instrumentos. Uma história me chamou particularmente a atenção: um aluno, Rafael, de 9 anos, guardava todo dia, religiosamente, as moedinhas que sobravam depois de comprar o pão e o leite para o café da família. Pretendia comprar um violino e tocá-lo em casa, para conhecer melhor o instrumento, como quem conhece a mulher amada aos pouquinhos. Naquele ritmo, com um violino dos mais simples custando cerca de R$ 250,00 na época, levaria cerca de um ano e meio – quase dois períodos letivos – para comprar o tão sonhado instrumento. Coloquei a história dele em destaque, assim como outra que também me chamou a atenção: a de jovens da extinta Febem do Tatuapé que não permitiram que seus colegas destruíssem, durante uma rebelião, a sala de música, onde ficavam guardados violinos, violoncelos e violões, usados nas aulas de música daqueles jovens esquecidos pela sociedade mas que – ao contrário do que muitos imaginam – não tinham perdido sua humanidade e sensibilidade. Todo o restante do prédio foi consumido pelas chamas. Um dado curioso: o professor deles, Márcio Demazo, era o mesmo maestro que dava aula aos alunos de Guarulhos. Citei, junto, a história da Orquestra Jovem Bacarelli, que atende, gratuitamente, a estudantes da Favela de Heliópolis, em um trabalho de grande alcance social que forma jovens virtuoses. Lembrei-me, também, de uma história contada pelo colega Roberto Godoy, também do Estadão, segundo a qual os moradores de Berlim do pós-Segunda Guerra, consultados pelo seu governo em escombros sobre o que deveria ser feito para reconstruir a vida devastada, escolheram a reativação de sua Filarmônica como algo muito importante para ajudar a levantar seu moral. Eles passavam fome e sede e sua cidade estava reduzida a ruínas, mas queriam dizer, simbolicamente, que, apesar de todo sofrimento, não haviam se tornado animais. Era uma maneira de afirmar para si próprios que, apesar do horror da guerra, sua humanidade ainda estava intacta. E sobreviveria. A Filarmônica de Berlim, uma das mais importantes orquestras do mundo, está aí, firme e forte, para comprovar essa máxima. Pois bem, a matéria saiu num domingo. No mesmo dia, estava de plantão no jornal, quando um colega atendeu uma leitora e a passou para mim dizendo: “A senhora pode falar com o autor do texto, ele está aqui ao meu lado”. Atendi e uma senhora me disse ter ficado sensibilizada com a história relatada pelo jornal e queria doar o equivalente a 90% do valor necessário para comprar um violino para o menino que guardava moedinhas. Pedia, entretanto, duas coisas: primeiro, a garantia de que ele usaria suas poucas economias para completar o que faltava, como forma de valorizar o seu esforço. Segundo, queria manter sua identidade em segredo. Bastava para ela saber que o menino tinha conseguido, enfim, o seu amado violino. Fui à sua casa, dois dias depois, pegar o violino. Era um apartamento simples, de classe média, na Barra Funda. Fiquei sabendo, então, que o dinheiro equivalia a quase toda sua aposentadoria de funcionária pública. Ela, aos 82 anos de idade, passaria um mês sobrevivendo com muito menos do que necessitava, mas ficaria satisfeita ao saber que havia ajudado um jovem estudante a realizar um sonho. Jamais esqueci seu rosto, que se iluminou, quando disse isso. Um grupo de empresários beneméritos se organizou e doou outros dez instrumentos. Uma alta funcionária de um banco privado ofereceu mais dois. O cineasta Ivo Branco fez questão de doar um violino que ganhara quando criança. Outras pessoas – a maior parte de forma anônima – doaram instrumentos. Em pouco mais de uma semana, tínhamos conseguido uns 30 violinos para a escola. Logo, chegariam a 40, quase todos novos. Com a doação, todos os alunos passaram a ter instrumentos para tocar. No dia da entrega do primeiro violino, fui à casa de Rafael, o menino que juntava moedinhas. Ele ficou radiante de felicidade e exclamou, quase chorando: “Que supresona, tio”. Seus pais comentaram que ele só falava disso havia mais de três meses e que haviam chegado à conclusão de que tinham um músico em casa, embora ninguém tocasse nenhum instrumento ou tivesse qualquer conhecimento musical. Cerca de um mês depois, os alunos, sob a liderança do professor e maestro Márcio Demazo, tocaram com seus novos instrumentos em uma camerata de cordas que montaram, a partir da chegada dos violinos. Foi uma forma de homenagear os doadores. Nervosos, eles erraram bastante, mas fiquei sabendo depois que vários jovens passaram a integrar orquestras pelo País e outros chegaram a viajar para o Exterior para estudar música. Não há dúvidas de que a música clássica mudou radicalmente a vida deles. Será que temos direito de duvidar que, como diria Gabo, o jornalismo é a “melhor profissão do mundo”?  Eu não tenho dúvidas, apesar de tudo o que falei no início deste despretensioso texto.

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