Por Assis Ângelo
Há um tempo que nunca acaba. Esse tempo é o tempo de ontem, mas também pode ser o tempo de hoje. Em tese. Tempo, tempo, tempo…
Há quem diga que o Nordeste brasileiro é um nordeste violento, carregado de coisas piores herdadas da Idade Média.
Pois, pois!
Tanto ontem quanto hoje, a violência carregada de absurdos grassou e grassa mundo afora.
Jesus, o JC, nasceu nas bandas do Oriente Médio pregando a paz e o bom viver.
Bom, o judeu é um povo historicamente sabido. E lá atrás, bem lá atrás, judeus botaram pra quebrar levando JC a se explicar ao bambambã Pilatos. Esse lavou as mãos e… Os romanos fizeram o que não deveriam ter feito: mataram o Salvador.
Voltemos, voltemos…
Pais, principalmente pai, no tempo d’antonte, descarregavam no lombo dos filhos a insatisfação e frustração que tinham consigo. Na verdade, até hoje.
O escritor Graciliano Ramos (1892-1953) comeu na mão da mãe e do pai o pão que o diabo amassou. Dos dois, pai e mãe, o bom Graça chegou a levar chicotadas e não foram poucas.

Como eu disse, a violência não é marca registrada do Brasil, tampouco do nosso Nordeste.
Lá longe, no século 19, um caboco chamado Franz Kafka sofreu na mão do pai. E na mão do pai, a mãe também sofreu.
Não vou concluir aqui tema tão absurdo, porém normalizado no correr dos séculos e séculos.
Antes disso, não custa dizer ou lembrar que Graciliano Ramos de Oliveira começou a sofrer profundamente quando perdeu a luz dos seus olhos. Sua infância foi a de um menino cego, que vivia o tempo todo escondido num quarto com os olhos em sangue.
No livro Infância, de 1945, Graciliano lembra terríveis momentos que viveu, no capítulo Cegueira:
“Afastou-me da escola, atrasou-me, enquanto os filhos de Seu José Galvão se internavam em grandes volumes coloridos, a doença de olhos que me perseguiu na meninice. Torturava-me semanas e semanas, eu vivia na treva, o rosto oculto num pano escuro, tropeçando nos móveis, guiando-me às apalpadelas, ao longo das paredes. As pálpebras inflamadas colavam-se. Para descerrá-las, eu ficava tempo sem fim mergulhando a cara na bacia de água, lavando-me vagarosamente, pois o contato dos dedos era doloroso em excesso. Finda a operação extensa, o espelho da sala de visitas mostrava-me dois bugalhos sangrentos, que se molharam depressa e queriam esconder-se. Os objetos surgiam empastados e brumosos. Voltava a abrigar-me sob o pano escuro, mas isto não atenuava o padecimento. Qualquer luz me deslumbrava, feria-me como pontas de agulhas. E as lágrimas corriam, engrossavam, solidificavam-se na pele vermelha e crestada. Necessário mexer-me à toa, em busca da bacia de água”.
A crueldade praticada pelo pai e pela mãe deixou marcas profundas no corpo e na alma do escritor.
Antes e depois de escrever Infância, Graciliano não deixou de lembrar os sofrimentos e aperreios provocados pelos pais. A mãe o ignorava e dele só se lembrava quando estava por aqui de irritação.
As dores de infância que nunca abandonaram Graciliano aparecem sem pieguice em Memórias do Cárcere, obra de 1953, em quatro volumes.
Em 1934, Graciliano publicou São Bernardo. Escrita incrível, como os personagens e, particularmente, Paulo Honório.
Honório foi criado por uma vendedora de cocadas, pois órfão que era. E por esse tempo, meninote ainda, foi guia de cego, como sabe o bom leitor.
Em 1944, um ano antes de Infância, o mestre alagoano publicou um livro praticamente esquecido até hoje. Título: Histórias de Alexandre.
Alexandre é um senhor loroteiro. A mulher dele, Cesário, é conivente com suas mentiras. A plateia é basicamente formada por cego preto Firmino, o cantador de viola Libório, o curandeiro Mestre Gaudêncio e a beata rezadeira das Dores.
Não sei não, mas acho que o humorista Chico Anísio se inspirou na mulher de Alexandre pra criar Terta. Lembra? “É mentira, Terta?”.
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