Por Assis Ângelo*

Agora, meus amigos e amigas, vamos para a parte final do papo que mantive com Glauco Mattoso (Pedro José Ferreira da Silva), o mais prolífico autor brasileiro de sonetos. Digo brasileiro, mas pode ser o mais prolífico autor de sonetos do mundo desde sempre ­– para ler a primeira parte, clique aqui; vale lembrar que ele é cego e responde em português arcaico por um programa de transcrição de voz chamado DOSVOX. Vamos lá!

Assis Ângelo – Você também tem escrito textos em prosa? E textos para música?

Glauco Mattoso – Sim, fiz parceria com musicos de varias tendencias, geralmente
pondo melodia em meus sonnettos. Mas fiz pausas na producção poética para escrever trez volumes de contos, um romance parodico, A Planta da Donzella (pervertendo a podolatria do José de Alencar em A Patta da Gazella), e em tractados orthographicos e estichologicos, alem de ensaios sobre sadomasochismo e fetichismo, chronicas e columnas na imprensa, como na revista Caros Amigos.

Assis – No dia a dia você ouve rádio, TV, CD, LP,  que mais? Cinema, teatro…?

Glauco – Fiz parte do gruppo de theatro do Paschoal da Conceição (discípulo do Zé Celso) emquanto ainda enxergava, mas agora não vou mais a shows, peças nem filmes. Sahir de casa é muito sacrificado e inseguro. Prefiro curtir som nos phones de ouvido e ouvir filmes pela TV, com áudio descripção do meu esposo. Meus cineastas predilectos são Kubrick, Ken Russell, Pasolini, David Lynch e Almodovar. Nenhum brazileiro. Todos, aqui, são bundas molles. Só Zé do Caixão passa perto do que quero. Ja que o cinema não me faz tanta falta, preencho o meu quotidiano como posso. Nestes dois sonnettos dou idéa, practica e theorica:

Territorio Transitorio [4454]

Si longa for demais a minha estrada,
talvez nem haja tempo de voltar.
Si houver, voltar aonde? A qual logar
pertenço? Algo acharei, voltando, ou nada?

Na duvida, prosigo. Penso, a cada
momento, si na vida vou deixar
alguma coisa prompta e, quando o par
de botas pendurar, si a coisa aggrada.

A vida passa rapido! Me enganno
achando que algum plano poderia
fazer, pois muda tudo, ao fim dum anno.

Melhor, mesmo, é prever uma utopia
mensal, ou semanal, cumprindo um plano
a cada minutinho do meu dia.

///

Dia do Braille [10.692]

Cansei ja de fallar! Essa mania
que todos os que enxergam teem me cansa,
pois acham que mais pesa na ballança
dum cego si elle em braille se vicia!

Àquelle que ja viu e que ja lia
nas lettras normaes, é desesperança
total que, nuns ponctinhos, haja mansa
leitura pelo tacto! Nem podia!

Ponctinhos appalpar é como ousar
ler algo por um pão com gergelim
ou, por um brigadeiro, solettrar!

Prefiro, pois, comel-os! Para mim,
programmas de informatica logar
tomaram desse braille tão ruim!

///

Assis – Glauco, dá uma resumida da vida vivida até aqui.

Glauco – Não recompensou mas compensou. Não recompensou porque sancto de casa não faz milagre. Si eu fosse francez ou inglez ja teria sido reconhescido, seja pela qualidade, seja pela quantidade, seja pelo contehudo pornô, seja pelo lado mais “nobre” e “elevado” da thematica philosophica, mas nem siquer tenho contracto com uma editora commercial. Só pela Braziliense publiquei ensaios sobre poesia marginal e tortura e, pela Record, um diccionario bilingue de palavrões, mas para a poesia não exsiste editor. Tenho eu mesmo que publicar, pelo meu sello Casa de Ferreiro, os livros de poemas, preparados pelo Lucio: um catalogo de
cento e cincoenta titulos, na maioria e-books e alguns impressos. Ou seja, compensou nesse sentido, da obra produzida, publicada e estudada no meio academico. Por fallar em academia, sou membro benemerito da Abrasso, Academia Brazileira de Sonnettistas.

Glauco Mattoso

Assis – E essa coisa de família, amor, esperança… Você tem medo da morte? E da violência que grassa no mundo, hein? Nós humanos temos salvação, nascemos para ter felicidade?

Glauco – Salvação? Necas de tupybirybas! Si me perguntarem si sou racista, respondo que sim: acho que a raça humana deveria ser exstincta por um cometa ou por um attaque extraterrestre. Só tenho pena do viralatta caramello e do basset hound, as raças mais fofas. Meu esposo ainda me deixa accreditar no affecto e no companheirismo. A culinaria italiana e as sobremesas mineiras me deixam accreditar no lado approveitavel da vida, desaffiando o quadro diabetico. Serve de consolo.

Assis – Em 1905, Olavo Bilac e Guimarães Passos publicaram um livro intitulado Tratado de Versificação. Você tem um livro com esse mesmo título. Fale da sua obra e de quantos livros publicou até agora. Tem pensado em roteiro para cinema?

Glauco – Meu tractado tinha o titulo de O sexo do verso: machismo e feminismo na regra da poesia, typo uma these, mas accabou sahindo impresso com o titulo mais obvio. Ja o reeditei pelo meu sello. Já publiquei mais de duzentos livros, na maioria digitaes, pela Casa de Ferreiro, alguns impressos em pequena tiragem. Todos serão raridades nos sebos virtuaes ou physicos do paiz… Para cinema quem me ropteirizou e dirigiu foi Gustavo Vinagre, no premiado Filme para poeta cego, mas almejo um longa-metragem para meu romance lyrico Raymundo Curupyra, O Caypora, todo composto em sonnettos, mas de enredo repleto de acção,
adventura e sexo, ambientado em Sampa, que até ganhou um Jaboty. Não creio num director nem numa productora capazes de encarar um argumento tão violento e cruel, que aliaz termina em suicidio, sem querer querendo dar spoiler.

Capa Caypora

Assis – O seu sobrenome é o mesmo sobrenome de um caboclo pernambucano chamado Virgulino e que entrou para a história como Lampião. Esse era cego de um olho e dizia que não precisava de dois porque para acertar no alvo tinha de fechar um deles. Pergunta: dá pra comparar a violência lampiônica com a violência praticada ora em dia pelos soldadecos do crime organizado?

Glauco – Não. Lampeão foi mais malvado ainda. Umas lendas dizem que elle perdeu um olho galopando pela caatinga, de raspão num cacto, mas outras dizem que elle tambem teve glaucoma. Seja como for, elle me fascina e já foi thema de meus poemas. Ja sonhei que entrava para o bando delle só para poder massagear os pés delle e dos demais jagunços… Por fallar nisso, me especializei na massagem podotherapeutica, chamada reflexologia, e frequento uma clinica onde todos os massagistas são cegos. La sou massageado e tambem massageio. O effeito é relaxante e allivia o estresse do dia a dia. Emfim, os pés não são somente fonte de fetichismo, mas tambem de tractamento holistico. Outra de minhas manias, essa especie de bruxaria do bem. A bruxaria do mal eu deixo para revidar o mau olhado dos meus inimigos, que não se conformam que um cego possa ser escriptor… Mas, para não perder a deixa, observo que, si sou xará do Lampe pelo sobrenome, sou pelo prenome xará do Pedro José Constancio, um pornô contemporaneo do Bocage. Versejei sobre esses xarás e dou exemplo abbaixo, num sonnetto que virou dissonnetto (com quattro quartettos) e numa ode decasyllaba.

Preto no Branco [4113]

Que eu tenha o sobrenome de Ferreira
da Sylva, que é tambem do Virgulino,
não causa expanto algum, sendo destino
commum a muita gente brazileira.

Mas, caso de outros dados alguem queira
saber, e quando os factos examino,
descubro que o bandido nordestino
estava, num dos olhos, com cegueira.

Glaucoma tambem teve Lampeão,
molestia que, supponho, a ponctaria
em nada lhe affectara no olho são
nem sua vida activa affectaria.

Bandidos, todos somos, todos são.
Commigo algo em commum a mais teria
aquelle cangaceiro: uma visão
normal da crueldade, noite e dia.


* Contatos pelos [email protected], http://assisangelo.blogspot.com, 11-3661-4561 e 11-98549-0333

 

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