Por Assis Ângelo

É sério, como se vê, o papo cego, este papo cego que iniciamos no dia 15 de abril de 2025, neste espaço. Há pouco, enviei uma dúzia de perguntas ao camarada Glauco Mattoso. O cabra é bom. Bom, não: é ótimo.

Glauco Mattoso

As perguntas que pediram respostas podem não ser o suprassumo de um caboclo como eu, mas as respostas são pra lá de ótimas. Dividimos este papo pelas ondas da Internet em duas partes. Na primeira, Glauco conta de si e dos outros, findando com citação ao mestre inglês John Milton. Esse Milton, autor do clássico Paraíso Perdido, nasceu no 9 de dezembro de 1608. E deste planetinha despediu-se em no dia 8 de novembro de 1674. Bom, vamos nessa e digam o que acharam.

(N.daR: o leitor que não estranhe, mas Glauco faz questão de escrever em português arcaico)

Assis Ângelo ­– Glauco, conte-nos um pouco sobre a sua vida incluindo filiação, irmãos etc…

Glauco Mattoso – Ja fallei e escrevi muito sobre tudo isso e muito ja escreveram sobre mim. Mas neste caso nossa conversa é como si fosse battepappo entre collegas no bar. Vale repisar toda a coisa. Para começar, quem lê para você vae reparar que escrevo pela antiga orthographia neste computador fallante. A orthographia é uma de minhas muitas manias e faz parte da rebeldia que me characteriza. No caso, contra um sacco de gattos pingados que se acha no direito de cagar regras a toda uma communidade lusophona. Ser retrô, às vezes, significa ser anarchista, até vanguardista.

Mas vamos la. Sou Ferreira da Sylva só por parte do avô paterno, mas os outros antepassados são italianos, os Canettieri e os Torrezani. Sou da Zona Leste de Sampa, redondezas da Mooca. Mais velho de trez irmãos. Só eu nasci com glaucoma, como o Ray Charles e o filho do Roberto Carlos. Ray Charles não era rico e perdeu a visão ainda creança. O filho do Roberto, mesmo rico, tambem accabou perdendo. Eu, da classe media baixa, passei por oito cirurgias, perdi primeiro o olho direito e, ja muito myope, o olho esquerdo depois dos quarenta. Suppondo que ficaria cego, e sem poder fazer tudo que a molecada fazia, virei leitor e escriptor desde cedo. Melhor alumno tambem, claro. Por causa disso sempre me bullyingavam, dentro e fora da eschola, e por causa disso virei sadomasochista: me fizeram lamber pés e chupar paus. Molecada typica de peripheria: nos annos cincoenta os arredores da avenida Sapopemba ainda eram muito baldios e os mattagaes o melhor scenario para curras entre moleques. Trauma duplo, o da deficiencia visual e o das curras, mas a litteratura serviu para desabbafar e a poesia para glosar. Para gozar, bastava a punheta. Até que eu encontrasse minha turma, nos annos septenta, nos gruppos de theatro e de militancia gay. Emquanto isso, me formei bibliothecario, trabalhei como bancario e desbundei como um dos poetas “marginaes” daquella geração.

O que me destaccou foi um poezine muito anarchico, chamado JORNAL DOBRABIL (parodiando o JORNAL DO BRAZIL), que era uma folha dobravel, ou seja, “dobrabil”. Recyclei a anthropophagia oswaldiana, mas, como sou mais escatologico, a minha foi uma “coprophagia”. Durante a dictadura, tal irreverencia chamou a attenção dos artistas e intellectuaes. Virei discipulo do Augusto de Campos e do Millor Fernandes, que me davam força. Até Caetano Velloso deu. Esse pamphleto virou livro e se tornou meu chartão de visita. Em seguida escrevi um romance autobiographico, o MANUAL DO PODOLATRA AMADOR: ADVENTURAS E LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS, onde narro essa porra toda. Mas o que eu queria mesmo era ser poeta. Junctei os poemas do DOBRABIL em livro, mas não eram os sonnettos que hoje faço. Essa disciplina e esse rigor vieram depois da cegueira completa, ou talvez por causa della, ja que a metrica e a rhyma adjudam a memorizar e a compor na cabeça antes de passar para o computador fallante. Prompto, fallei, por fallar nisso.

Assis – Sei que o seu nome de batismo é Pedro José Ferreira da Silva. Como surgiu o pseudônimo Mattoso? Conte detalhes.

Glauco ­– Paresce piada prompta. O portador de glaucoma é glaucomatoso. Claro que eu percebi a analogia com Gregorio de Mattos, outro satyrico e fescennino. Mas a intenção era usar meu logar de falla como deficiente para sacanear todas as deficiencias como parte duma “missão” sadomasochista, ja que meu pae era kardecista e eu, embora não siga nenhuma chartilha, me tornei uma mixtura de antagonismos: sou exsistencialista e espirita. A contradicção e o paradoxo são outra de minhas manias. Gosto de explorar os conflictos humanos, a dupla personalidade, entre a perversão e a perversidade, entre a compaixão e a humanidade, em tudo e em todos. Por isso desdenho das censuras, que só visam a apparencia pornographica exterior, ignorando contehudos mais profundos. Nem sei o que é peor, a censura de “bons costumes” da direita ou a “politicamente correcta” da esquerda. Para mim, pisar no callo dos excluidos me irmana a todos os injustiçados, os da graça divina e os da desgraça humana.

Assis – Particularmente, tenho muita dificuldade de aceitar com naturalidade o problema que me causou o descolamento de retina. Eu estava entrando na casa dos sessenta. Fui submetido a nove cirurgias em vão. E você, como recebeu a notícia dos médicos dando conta de que você estava cego? Passou por tua cabeça a ideia de suicídio?

Glauco – Como eu dizia, passei por oito cirurgias, a primeira aos oito annos e a ultima aos quarenta e quattro. A cada operação, os medicos repetiam que, si eu continuasse enxergando, estaria no lucro, pois meu glaucoma congenito é fatal. Perdi o olho direito depois dos vinte e o esquerdo depois dos quarenta. Ja sem visão no direito, fui morar no Rio para poder trabalhar como bibliothecario no Banco do Brazil, mas na verdade eu queria sahir da casa dos paes para não me suicidar emquanto la morasse, a fim de poupar a familia do choque directo. Elles receberiam a noticia à distancia.

No Rio os abysmos são faceis de accessar e eu queria seguir o exemplo de outros artistas que se precipitaram. Para mim a perda do olho esquerdo viria logo, mas não veiu e segui tocando a vida, mas ja convivendo com gente do meio artistico e intellectual. Foi la que comecei a editar o DOBRABIL. Isso me entreteve e accabei addiando o suicidio.

Na volta a Sampa, comecei a morar em appartamento (no Rio a pensão ficava num casarão), primeiro num segundo andar, depois num nono, donde planejei me jogar assim que perdesse o olho esquerdo. Depois da perda total, mamãe veiu morar commigo uns mezes e addiei de novo. Mais tarde, percebi que conseguia me virar sozinho dentro de casa e, de repente, o sobrenatural interferiu. Traduzi Borges juncto com o professor Jorge Schwartz, ganhamos um Jaboty pela traducção, e adquiri meu primeiro computador fallante, installado com o programma DOSVOX, da UFRJ, editor de texto que uso até hoje. Esse programma me permittiu digitar tudo que vinha na cabeça, inclusive uma poesia rhymada e metrificada que eu nem imaginara poder compor. No primeiro anno, passei dos trezentos sonnettos e, no terceiro, dos mil. Hoje passei dos quattorze mil poemas, interrompi varias vezes a producção poetica para escrever e publicar outras coisas e, depois de duzentos livros, entendo que esse affan me dissuadiu do suicidio, appesar duma cegueira cada vez mais soffrida com a chegada da velhice e de outras doenças, como a neuropathia diabetica.

Entretanto, a coincidencia com Borges não foi só na cegueira progressiva e na perda em meia edade: foi tambem na vida conjugal, ja que, a exemplo da Maria Kodama, tambem me casei com um japonez, cuja companhia me reforçou a decisão de ir addiando o suicidio, que não está definitivamente deschartado, ja que a morte assistida do Antonio Cicero me suggere que agora a coisa fica mais viavel.

Assis – Pra falar a verdade, ainda não me considero com a cabeça totalmente no lugar. Ainda entro em depressão… A literatura me faz bem. É como se fosse remédio. Ouço livros e dito textos a pessoas queridas como a historiadora Flor Maria. E você ouve muito livro, mexe na internet com facilidade?

Glauco – Não gosto de audiolivros. Prefiro ler/ouvir um texto no computador fallante, digitado por mim mesmo ou por outros auctores. Meu esposo lê para mim, inclusive jornaes, e ouço radio para me informar do noticiario. Tambem ouço muita musica em CD e cheguei a produzir CDs de punk rock em sociedade com o membro duma dessas bandas. Um desses CDs, chamado MELOPÉA, junctou gente que musicou meus sonnettos, desde Arnaldo Antunes ao cearense Falcão. Mas o DOSVOX só me permitte trocar emails, pois nas redes é meu esposo Akira, alem do meu editor Lucio Medeiros, quem monitora o facebook, o instagram e o twitter. Nada disso remedia a depressão, a insomnia e a angustia exsistencial, todavia. Continuo maldizendo a cegueira e, ao contrario de Borges, não acho que seja uma dadiva divina. Dadiva foi a veia poetica, graças à assistência espiritual de Borges, Homero, Milton, Joyce, sem fallar no Cego Adheraldo…

Assis – Eu sempre li autores diversos, nacionais e estrangeiros. E você, de quais autores mais gosta? E gêneros literários como romance, conto, poesia…?

Glauco – As influencias directas são do Augusto de Campos na poesia e do Millor no livre pensar. Com elles convivi e dialoguei. Mas as influencias remotas vão da sexualidade violada à cantoria violeira, passando por Sade, Masoch, Aretino, Bocage, Gregorio e chordelistas da “litteratura de bordel”, practicantes da chamada glosa fescennina, herdeira dos epigrammas latinos e dos goliardos medievaes. Sou, portanto, um legitimo expoente da tradição pornographica na literatura canonica, ja que sou estudado em theses de universidades nacionaes e extrangeiras. Na prosa tambem curto Genet, Henry Miller, Orwell e Burgess, mas, como tenho a cultura encyclopedica dos bibliothecarios, apprecio muitos classicos universaes, de Boccaccio a Rabelais.

Assis – Acabei de escrever uma série sobre licenciosidade na cultura popular. Nesse trabalho, que pretendo que vire livro sob o título Do Popular ao Erudito: o Sexo como Expressão Artística, tem de tudo, incluindo obras de autores como Gregório de Matos e Guerra, Dalton Trevisan, Hilda Hilst, Marquês de Sade, Restif de La Bretonne, entre muitos outros. Você é um apaixonado pelo Boca do Inferno. O que tem escrito sobre ele? E no campo propriamente poético, do que você mais gosta: quadra, redondilhas, sextilhas, décimas ou sonetos?

Glauco – Estou nas principaes anthologias eroticas, inclusive a da Eliane Robert Moraes e a do Alexei Bueno, subtitulada DE GREGORIO DE MATTOS A GLAUCO MATTOSO. Em Gregorio sigo a linha satyrica, não só sexual mas tambem politica, alem do modello sonnettistico camoneano. Minha producção mais volumosa é de sonnettos (onze mil, um recorde), mas já glosei muito motte e pellejei com gente de respeito, como o Moreira de Acopiara, que publicou nosso folheto. Não satisfeito, inventei gêneros alternativos, como o dissonnetto de quattro quartettos ou o “infinitilho” de estrophes illimitadas, cada estrophe sem limite de versos, mas rhymadas na sequencia das anteriores, typo ABCDEFG… O exemplo barroco de Gregorio é instigante no sentido de crearmos jogos de palavras e eschemas estrophicos/rhymaticos engenhosos. O concretismo tambem me estimulou nesse terreno. Em alguns cyclos narrativos mais longos usei formatos estrophicos variados, como decima seguida de quartetto, oitava camoneana e verso livre, mas a cegueira sempre predominando como thema, como em “São Sansão, Sancta Dalilah”, “Evangelho de Judas Izrahiah” ou “Historia da cegueira”, estes reunidos no livro OBSCURAS ESCRIPTURAS, satyrizando a mythologia biblica, a exemplo do John Milton, que revisitou a lenda de Sansão.

Meu amigo, minha amiga: você está gostando desse nosso papo? Tem mais. Aguarde…

Contatos pelo http://assisangelo.blogspot.com.

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