Por Álvaro Bufarah (*)
Depois da prensa tipográfica e do Kindle, o audiolivro é a mais recente expressão da revolução do texto. E a Audible, com sua base de mais de 500 mil títulos e alcance global, agora aposta na inteligência artificial para acelerar e democratizar essa experiência. O plano é ousado: permitir que editoras produzam audiolivros com narração automatizada, traduções por IA e múltiplas vozes sintéticas − tudo com qualidade editorial e alcance multilingue.
Segundo a empresa, as soluções já disponíveis permitem duas modalidades: produção gerenciada pela Audible, em que todo o processo é operado internamente; ou o modelo self-service, no qual as editoras utilizam a tecnologia de forma independente. Em ambos os casos, são mais de 100 vozes geradas por IA − com sotaques diversos em inglês, espanhol, francês e italiano − capazes de adaptar a leitura ao estilo e à emoção do texto.
O passo seguinte é igualmente ambicioso. A Audible lançou, em versão beta, uma funcionalidade de tradução por IA. Inicialmente disponível do inglês para espanhol, francês, italiano e alemão, o recurso visa internacionalizar obras de maneira rápida e econômica. A promessa é que o autor que publica hoje em Nova York possa, em questão de dias, ser ouvido em Paris, Roma ou Berlim − com tradução contextualizada e interpretação fiel.
Há duas opções de tradução: o modelo texto-para-texto, que transforma o conteúdo original para outro idioma e permite narração humana ou por IA; e o modelo fala-para-fala, que preserva a identidade vocal do narrador original, traduzindo o conteúdo e mantendo o tom, o ritmo e a expressividade − um feito notável, que depende de avanços recentes em deep learning e voice cloning.
Mais do que eficiência, essas inovações ampliam o acesso. No Brasil, onde quase 50% da população declara ter dificuldades em leitura contínua (IBGE, 2023), o audiolivro surge como porta de entrada para o conhecimento, e a produção automatizada permite a disponibilização de obras que antes seriam economicamente inviáveis de gravar.
Especialistas como o professor Daniel Gatti, da Universidade de Buenos Aires, argumentam que “a IA pode ser a ponte entre o conteúdo e o leitor ausente – aquele que não lê por limitação física, cognitiva ou econômica”. A Audible, nesse ponto, acerta ao colocar a tecnologia a serviço da inclusão.
Com essa virada, o mercado editorial global sente os impactos. Produzir um audiolivro tradicional pode custar entre US$ 5 mil e US$ 15 mil, dependendo do tempo, da complexidade e do narrador. Com IA, esse custo cai para menos de 10%, abrindo espaço para pequenas editoras, autores independentes e novos gêneros literários explorarem o áudio como forma primária de publicação.
Empresas como Apple Books, Google Play Books e Kobo já testam soluções semelhantes. A startup canadense Respeecher oferece dublagens automatizadas para obras literárias e até reinterpretações com vozes históricas. É a voz de Shakespeare renascendo em francês − com sotaque de Marselha, se desejar.

Ainda que o avanço seja bem-vindo, críticos alertam para os riscos. Como garantir que uma voz sintética transmita a emoção de um narrador humano? Como assegurar que a tradução por IA respeite nuances culturais, gírias, ironias e sotaques regionais? E mais: como proteger autores e artistas das clonagens vocais não autorizadas?
Segundo a pesquisadora Helen Slater, da Universidade de Oxford, “o futuro dos audiolivros será definido pelo equilíbrio entre personalização automatizada e curadoria ética”. A Audible, ciente disso, já oferece a opção de revisão humana nas traduções − feita por linguistas especializados − e garante que autores mantenham controle sobre as vozes e idiomas escolhidos.
O que se inicia com tecnologia termina em estética. Será que os ouvintes aceitarão a beleza da voz sintética como legítima? Ou será sempre uma simulação imperfeita da emoção humana? A julgar pela velocidade das transformações e pela qualidade dos resultados já apresentados por plataformas como ElevenLabs, Speechki e Murf AI, a resposta pode ser surpreendentemente afirmativa.
Na prática, a IA está criando uma nova linguagem sonora para a literatura, em que a voz não precisa ser humana para ser comovente. E nesse cenário híbrido, os ouvintes − agora também usuários − tornam-se coautores de sua experiência narrativa.
A Audible avança como protagonista de um novo pacto entre tecnologia e cultura. Ao oferecer produção e tradução automatizadas, ela abre uma nova porta para autores, amplia o alcance do conteúdo literário e desafia os modelos tradicionais de criação.
Ainda que a jornada esteja apenas no início, uma coisa é certa: a leitura em voz alta, que já foi privilégio de poucos, agora pode ecoar em muitos idiomas, estilos e vozes − inclusive aquelas que nunca existiram de verdade. Porque, no fim das contas, o que importa não é quem lê, mas o que se ouve.
Fontes consultadas:
- Audible. Press Release – AI Narration and Translation Launch, jun. 2025.
- IBGE. PNAD Contínua – Educação, 2023.
- Gatti, Daniel. “La accesibilidad del contenido digital en América Latina”, Universidad de Buenos Aires, 2024.
- Slater, Helen. “Artificial Narration and Literary Fidelity”, Oxford AI & Literature Review, vol. 17, 2025.
- The Verge. “Audible AI Voices Could Reshape the Audiobook Market”, maio 2025.
- Wired. “Synthetic Voices, Real Emotions: The Ethics of Audio AI”, mar. 2025.
- ElevenLabs, Speechki, Murf AI – Whitepapers institucionais e estudos de caso.

Você pode ler e ouvir este e outros conteúdos na íntegra no RadioFrequencia, um blog que teve início como uma coluna semanal na newsletter Jornalistas&Cia para tratar sobre temas da rádio e mídia sonora. As entrevistas também podem ser ouvidas em formato de podcast neste link.
(*) Jornalista e professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e do Mackenzie, pesquisador do tema, integra um grupo criado pela Intercom com outros cem professores de várias universidades e regiões do País. Ao longo da carreira, dedicou quase duas décadas ao rádio, em emissoras como CBN, EBC e Globo.
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